Análise
Política cultural ou policiamento artístico? O caso Tsunami e os dilemas do kuduro em Angola
As políticas culturais sempre desempenharam um papel determinante na valorização, regulamentação e promoção das expressões artísticas, sobretudo no campo da música urbana. Em diferentes latitudes do mundo, observa-se uma tentativa dos Estados em dialogar com fenómenos culturais que emergem das periferias urbanas, carregados de contestação social, identidade local e inovação estética.
Nos Estados Unidos, na Nigéria e no Brasil, a relação entre políticas públicas e música urbana assumiu contornos próprios, com avanços, contradições e experiências que podem servir de referência para Angola, em particular no tratamento do kuduro, uma das manifestações culturais mais expressivas e internacionalmente reconhecidas do país.
1. A Experiência Americana: O Hip-Hop como Força Cultural e Económica
Nos Estados Unidos, o hip-hop, nascido no Bronx nos anos 1970, foi inicialmente alvo de marginalização e criminalização. No entanto, a força cultural e económica do movimento levou a uma viragem na forma como o Estado e as instituições privadas se relacionaram com ele. Hoje, o hip-hop é considerado parte integrante da indústria cultural americana e até utilizado como instrumento diplomático. Segundo Tricia Rose (1994), o hip-hop constitui “uma expressão cultural de resistência e de afirmação identitária das comunidades afrodescendentes”, sendo, portanto, impossível de ignorar no desenho de políticas culturais. O apoio institucional a festivais, a criação de museus como o Universal Hip-Hop Museum em Nova Iorque e a sua incorporação em currículos escolares evidenciam o reconhecimento do género como património cultural e vector de soft power.
2. A Nigéria e o Afrobeat: Um Exemplo de Política Cultural Estratégica
Na Nigéria, o afrobeat e, posteriormente, o afropop, transformaram-se em símbolos nacionais e produtos de exportação cultural. O Estado, aliado a investidores privados, passou a investir em festivais, plataformas digitais e acordos de distribuição internacional. Fela Kuti, o ícone do afrobeat, sofreu censura e perseguição política nos anos 1970 e 1980, mas sua influência obrigou o poder público a reconhecer a relevância da música urbana enquanto força social e económica. Hoje, a indústria musical nigeriana é avaliada em milhões de dólares, com artistas como Burna Boy e Wizkid a atingirem o mercado global. De acordo com Adeola (2020), “a música urbana tornou-se um dos pilares do soft power africano, reposicionando a Nigéria no mapa cultural mundial”.
3. O Brasil e o Funk Carioca: Da Perseguição à Política de Integração
No Brasil, o funk carioca viveu um percurso semelhante. Criminalizado nos anos 1990, associado ao tráfico e à violência urbana, o género passou por forte estigmatização. Contudo, a luta de artistas e produtores culturais resultou em políticas de reconhecimento. O movimento “Funk é Cultura”, por exemplo, ganhou apoio de académicos e activistas, forçando mudanças de percepção. Hoje, o funk é objecto de políticas de integração, como editais públicos de fomento e a realização de festivais que recebem apoio institucional. Hermano Vianna (1988) destacou que “o funk expressa as dinâmicas das periferias urbanas e não pode ser dissociado do contexto social que o gera”. Assim, a música urbana brasileira transformou-se num elemento central de inclusão e identidade cultural.
4. Angola e o Kuduro: Entre a Marginalização e o Reconhecimento
Em Angola, o kuduro nasceu nos musseques de Luanda nos anos 1990, como uma fusão entre batidas eletrónicas e danças de rua. Tal como o hip-hop nos EUA e o funk no Brasil, o kuduro enfrentou preconceitos, censura e estigmatização. A sua ligação às periferias, à contestação social e ao improviso linguístico muitas vezes colocou-o em rota de colisão com a política cultural oficial, mais inclinada a valorizar a música tradicional e erudita. Contudo, a força criativa do kuduro e sua rápida disseminação internacional tornaram-no num emblema cultural de Angola.
O projecto “I Love Kuduro”, idealizado pelo artista Coréon Dú, foi um marco nesse processo de legitimação. O festival reuniu artistas nacionais e internacionais, criando uma plataforma de valorização da cultura urbana angolana e projectando o kuduro para palcos internacionais. Mais do que um evento musical, foi um projecto de política cultural de reconhecimento e promoção, com impacto direto na autoestima cultural da juventude angolana.
5. Censura e Controvérsias: O Caso do Kudurista Tsunami
Apesar dos avanços, as tensões entre liberdade artística e regulação estatal continuam. O recente caso do kudurista Tsunami, proibido de actuar por decisão conjunta do Ministério da Cultura e da OMA até “segunda ordem”, reacendeu o debate sobre os limites da censura e da política cultural em Angola. A justificação invocada recaiu sobre conteúdos considerados “imorais e desrespeitosos”, mas a medida foi interpretada por muitos como um retrocesso na valorização da música urbana.
Segundo Stuart Hall (1997), “a cultura popular é um campo de disputa onde se confrontam significados, valores e ideologias”. Nesse sentido, a censura ao Tsunami revela o embate entre uma visão conservadora da política cultural e a realidade de uma juventude que encontra no kuduro um espaço de expressão, resistência e afirmação social. A interdição, em vez de resolver o problema, amplia a distância entre criadores e instituições públicas, reforçando a perceção de que ainda há uma política cultural seletiva e excludente.
6. Desafios e Perspectivas para Angola
A experiência internacional demonstra que a repressão e a criminalização apenas atrasam o inevitável reconhecimento da música urbana como património cultural. O exemplo do hip-hop nos EUA, do afrobeat na Nigéria e do funk no Brasil evidencia que o caminho mais eficaz é a integração através de políticas públicas consistentes. Para Angola, isso implica:
1. Revisão da política cultural nacional, incorporando explicitamente a música urbana como património cultural contemporâneo.
2. Criação de espaços institucionais de diálogo entre artistas, Estado e sociedade civil, reduzindo o fosso entre a produção cultural e as normas políticas.
3. Investimento em festivais, formações e plataformas digitais, valorizando o kuduro como produto cultural e económico de exportação.
4. Promoção da liberdade artística com responsabilidade social, combatendo excessos sem cair em censura selectiva.
Finalmente, é importante referir que as músicas urbanas, ao longo da história recente, revelaram-se mais do que simples entretenimento: são veículos de identidade, resistência e inovação. O caso de Angola, com o kuduro, inscreve-se nessa dinâmica global. A censura a artistas como Tsunami mostra que o país ainda enfrenta dilemas na definição de uma política cultural inclusiva, mas também abre espaço para refletir sobre caminhos possíveis. A experiência do projecto I Love Kuduro prova que, quando há investimento e reconhecimento, o kuduro pode elevar Angola ao cenário internacional. O desafio que se coloca é simples e profundo: transformar a música urbana de “problema” em “património”, de “ameaça” em “recurso estratégico”.