Análise
Os Eurobonds e o espelho da governação de Angola: quem somos quando o mercado nos olha?
Com base em informações do Jornal Expansão, publicadas na edição de 22 de Outubro de 2025, sobre o prospecto da emissão dos Eurobonds de Angola, constata-se que os mercados financeiros internacionais são, na realidade, espelhos da credibilidade política e institucional dos Estados. O que o Governo apresenta aos investidores não é apenas um conjunto de dados técnicos, mas uma narrativa sobre a qualidade da governação, a previsibilidade das políticas públicas e a confiança na estabilidade do país.
Quando o prospecto angolano destaca riscos como tensões sociais, inflação alta, queda das reservas internacionais e depreciação cambial, o que os mercados leem não é apenas vulnerabilidade económica, mas sim fragilidade institucional. É o reconhecimento de que, no século XXI, a reputação governativa é o verdadeiro rating de um Estado.
1. A confiança como o activo invisível da economia
Nos mercados internacionais, o crédito é mais psicológico do que monetário. A confiança é construída ao longo de anos e pode ser destruída em dias. Cada emissão de dívida pública representa uma prova de fé dos investidores na capacidade de um Estado cumprir o que promete.
Joseph Stiglitz (2002) explica que “as economias emergentes não são julgadas pelo seu potencial, mas pela sua coerência e consistência institucional”. Isto significa que, mesmo que um país tenha abundantes recursos naturais, como é o caso de Angola, se as suas instituições não forem confiáveis, o mercado penaliza com juros mais altos e menor interesse de investimento.
A confiança dos mercados nasce da previsibilidade. Governos que mudam de rumo frequentemente, ou que comunicam decisões sem transparência, provocam desconfiança. E essa desconfiança é paga com spreads mais altos nas emissões de Eurobonds, que se traduzem em milhões de dólares adicionais em encargos financeiros.
2. Reformas e tensões sociais: quando o povo fala, o mercado escuta
O Jornal Expansão revela que o próprio Governo angolano reconhece, no prospecto, que as reformas nos subsídios aos combustíveis “desencadearam protestos públicos generalizados e tensões políticas intensificadas”. Essa é uma admissão importante, pois demonstra que a estabilidade política e a paz social são condições essenciais para a confiança dos investidores.
Dani Rodrik (2011) já advertia que “as reformas económicas sem legitimidade social geram instabilidade e desaceleração do crescimento”. Quando as políticas de austeridade são implementadas sem diálogo com a sociedade civil, sindicatos e empresários, criam-se percepções de exclusão e injustiça que enfraquecem o capital político do Estado.
A tensão social tem, portanto, um preço financeiro. Cada manifestação ou protesto violento é interpretado pelos mercados como uma ameaça à previsibilidade do país, e essa leitura eleva o custo da dívida.
3. Estratégias de contorno: governar com diálogo, transparência e inclusão
Para reconquistar a confiança dos mercados e reduzir o custo do financiamento internacional, Angola precisa de agir em várias frentes:
1. Reforçar o diálogo social: As reformas económicas devem ser acompanhadas de uma comunicação clara e transparente. O Governo deve explicar à população as razões e os benefícios das reformas, apresentando medidas compensatórias para os grupos mais vulneráveis. A inclusão social não é apenas um imperativo moral, é também um factor de estabilidade económica.
2. Institucionalizar a previsibilidade: A criação de um Conselho de Estabilidade Macroeconómica e Financeira, com representação do Governo, do Banco Nacional de Angola (BNA), da banca e do sector produtivo, ajudaria a planificar políticas a médio prazo e a reduzir a incerteza. A previsibilidade é o antídoto mais eficaz contra a desconfiança dos mercados.
3. Reforçar a transparência fiscal e orçamental: Os investidores exigem clareza. A divulgação regular e detalhada sobre a dívida pública, as reservas cambiais e os fluxos orçamentais aumenta a confiança internacional. A adopção de práticas internacionais de reporting, alinhadas com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, ajudaria Angola a reforçar a sua reputação como devedor confiável.
4. Diversificar a economia e reduzir a dependência do petróleo:
A estrutura económica angolana continua excessivamente dependente do sector petrolífero. Essa dependência amplifica a vulnerabilidade cambial e a instabilidade das receitas públicas. A aposta em sectores como o turismo, a agricultura inteligente, a economia digital e a indústria transformadora criaria fluxos de receitas mais sustentáveis e previsíveis.
5. Fortalecer o BNA e liberalizar o mercado cambial: O prospecto citado pelo Expansão aponta que as restrições impostas pelo Banco Nacional de Angola dificultam o desenvolvimento de um mercado cambial eficiente. O país precisa de avançar para uma maior autonomia cambial, permitindo que o kwanza reflita as forças reais de mercado. Isso não só reforça a credibilidade monetária, como também demonstra maturidade institucional perante os investidores.
6. Criar um fundo soberano de estabilização: Com base em experiências bem-sucedidas de países produtores de petróleo, como a Noruega e o Qatar, Angola poderia fortalecer o seu fundo soberano, tornando-o mais autónomo e transparente. Este fundo serviria como reserva estratégica para períodos de queda de preços do petróleo, reduzindo a necessidade de endividamento externo em momentos de crise.
7. Implementar políticas de diplomacia económica:
A confiança também se constrói fora das fronteiras. A diplomacia económica deve ser uma extensão da política financeira. A presença activa de Angola em fóruns internacionais de crédito, investimentos e sustentabilidade melhora a imagem do país como parceiro fiável.
4. A dívida como retrato da governação
O Jornal Expansão sublinha que o serviço da dívida angolana atingirá 12,2 mil milhões de dólares em 2025, dos quais 82% correspondem a dívida externa. Embora o rácio dívida/PIB tenha descido para 60%, o Governo reconhece que “a incapacidade de gerir adequadamente a sua dívida pode ter um efeito adverso material na economia”.
Thomas Piketty (2014) interpreta a dívida pública como “um reflexo da maturidade política de um Estado”. O problema, portanto, não está apenas na dívida em si, mas na forma como ela é gerida, refinanciada e utilizada. Uma gestão transparente e tecnicamente sólida, aliada a uma comunicação clara aos credores, pode transformar o endividamento em instrumento de desenvolvimento sustentável.
5. O factor Cabinda e a geopolítica da estabilidade
Os mercados também lêem a política interna. O prospecto governamental, citado pelo Expansão, menciona as tensões na província de Cabinda e a actividade residual da FLEC. Embora o Governo assegure que não há risco à integridade territorial, os investidores interpretam qualquer menção a conflito como risco soberano.
Samuel Huntington (1996) alertava que “os mercados fogem de países que não conseguem controlar o seu território”. Daí que a resolução definitiva do dossiê Cabinda, com base em diálogo e desenvolvimento local, não seja apenas uma questão política, mas também uma estratégia económica inteligente.
6. Inflação, reservas e a disciplina monetária
O documento reconhece ainda que “a inflação persistente e a desvalorização cambial podem ter um efeito adverso significativo na economia angolana”. A queda das reservas internacionais, estimada pelo FMI em 3,1 mil milhões de dólares até 2026, é outro sinal de alerta.
Milton Friedman (1963) ensinou que “a estabilidade monetária é o primeiro sinal de disciplina de um governo”. Para inverter a tendência, Angola precisa reforçar a política monetária com foco na credibilidade do BNA, combatendo a inflação através da produção interna e não apenas da política de juros.
7. A reputação governativa como capital internacional
Francis Fukuyama (2013) resume: “A força de uma nação reside menos na sua riqueza e mais na qualidade das suas instituições”. O que os mercados querem ver em Angola não é apenas petróleo, mas previsibilidade, transparência e estabilidade.
O crédito é a tradução financeira da confiança. Se Angola quiser reduzir o custo da sua dívida e atrair capital produtivo, deve investir primeiro na reforma das suas instituições, na consolidação da paz social e na comunicação transparente com o mundo.
8. Conclusão: o crédito começa dentro de casa
O prospecto dos Eurobonds, revelado pelo Jornal Expansão, é mais do que um documento técnico — é um espelho político. Ele mostra como os investidores percebem Angola e o que esperam do seu futuro.
Os mercados internacionais não financiam países ricos, financiam países confiáveis. E a confiança não nasce de discursos, mas de práticas consistentes de boa governação, responsabilidade fiscal e respeito pelo cidadão.
O caminho para reduzir o custo da dívida passa, inevitavelmente, por reconstruir a reputação governativa. A confiança do mercado começa na confiança do povo, e só quando o cidadão acredita na sua governação é que o investidor acreditará também.
