Análise

O que falta aos partidos políticos angolanos: ideologia, projecto ou povo?

Publicado

em

“A democracia não se limita ao acto de votar; é, sobretudo, um processo contínuo de construção colectiva de futuro.” — Amartya Sen

1. O tempo das grandes perguntas

Angola vive um tempo de interrogações. O crescimento demográfico aumenta, o desemprego juvenil explode, a crise habitacional multiplica-se, e a desigualdade territorial grita — enquanto a confiança nas instituições políticas continua a descer. As eleições deixam de ser momentos de entusiasmo e tornam-se rituais de obrigação. A abstenção não é apenas sinal de desmobilização; é um grito de desilusão.

Os partidos, que deveriam ser pontes entre o povo e o poder, as ideias e as acções, tornaram-se, em muitos casos, estruturas enclausuradas, centradas na sua própria sobrevivência. Tal como afirmava Robert Dahl (1989), “quando os canais institucionais falham em mediar as expectativas do povo, a democracia começa a sufocar em sua própria retórica.”

Assim, impõe-se a pergunta: o que está em falta? São as ideias? É o plano? Ou é o próprio povo?

2. A falência da ideologia: entre a herança e o vazio

No pós-independência, Angola teve partidos com narrativas ideológicas claras: socialismo marxista, nacionalismo progressista, independência soberana, libertação económica. Mas hoje, décadas depois, essas palavras perderam corpo, e o que sobrou foram etiquetas. A maioria dos partidos funciona em torno de lideranças personalistas, não de ideias consistentes.

Manuel Castells (2009) afirma que “uma política sem fundamentos ideológicos é como um navio sem bússola: pode flutuar, mas não navega.” O que vemos actualmente é uma substituição da ideologia por um marketing político centrado em imagens, slogans e presenças esporádicas nas redes sociais. A política vira “moda”, e a ideologia vira “produto”.

Mas a ideologia não é apenas um conjunto de frases feitas. É a matriz de valores que orienta escolhas difíceis: onde investir? Quem priorizar? O que proteger? E, como dizia Karl Mannheim, “a ausência de ideologia não é neutralidade, é inconsciência política.”

É por isso que tantos partidos dizem defender “o povo”, mas aprovam políticas que o empobrecem. Dizem priorizar a juventude, mas abandonam a educação técnica. Dizem promover o empreendedorismo, mas não oferecem sequer dados fiáveis sobre os mercados locais.

3. Projecto de país: onde está o plano que nos une?

Se os partidos são vagos nas ideias, são ainda mais frágeis nos planos. Um partido político deveria oferecer ao país um projecto de nação. Algo que vá além de promessas eleitorais. Um roteiro detalhado: o que fazer nos primeiros cem dias? E nos cinco anos? Com que recursos? Com que parceiros? Em que territórios?

O problema é que os programas políticos em Angola, quando existem, são superficiais, sem análise de contexto, sem metas mensuráveis e, pior, sem compromisso com a fiscalização cidadã. É o que Jeffrey Sachs (2015) chama de “desenvolvimento por imitação”: planos copiados de outras realidades, sem conexão com os desafios locais.

Por exemplo: fala-se de transição digital sem garantir internet básica nas zonas rurais. Fala-se de turismo sem planeamento territorial. Fala-se de segurança alimentar sem dados agrícolas actualizados. Como formular políticas públicas sem mapas, censos, sistemas interoperáveis ou escuta popular?

Carlos Lopes (ex-Secretário Executivo da Comissão Económica da ONU para África) defende que África precisa de “projectos de médio e longo prazo, integrados com planos orçamentais realistas, e monitorados por indicadores claros.” A política baseada em improviso e propaganda já deu provas do seu esgotamento.

4. O povo: figurante ou protagonista?

O maior paradoxo da democracia em Angola é este: os partidos dizem representar o povo, mas agem como se o povo fosse um detalhe no processo político.

O cidadão é chamado para as campanhas, mas excluído da formulação dos programas.

É manipulado com “kits de campanha”, mas não envolvido na fiscalização dos eleitos.

É usado como massa de manobra nos comícios, mas ignorado nos conselhos de governação.

Boaventura de Sousa Santos (2014) argumenta que “sem democracia participativa, a democracia representativa torna-se uma aristocracia eleitoral.” E é isso que começa a surgir: partidos aristocráticos, onde poucas famílias dominam as listas, os fundos, as decisões e os caminhos.

Onde estão os espaços de escuta estruturada? Onde está a transparência dos congressos? Onde está a prestação de contas pública das verbas partidárias? Em vez de “partido de massas”, o que temos é “partido de cúpulas”.

A cidadania não é apenas um acto de votar. É um processo contínuo de co-decisão. E sem ela, como disse Amílcar Cabral, “ninguém luta eficazmente por uma ideia que não compreende.”

5. A reforma possível: partidos com alma e estrutura

Para que os partidos angolanos sejam mais do que instrumentos eleitorais, precisam de uma reforma profunda, ética, orgânica e institucional.

a) Reorientar para os valores

Retomar um núcleo ideológico claro: o que defende este partido? Qual é a sua visão de Estado? Que tipo de justiça económica propõe? Como entende o papel da juventude, das mulheres, das igrejas, da sociedade civil?

b) Planear com base em dados

Construir programas sustentados em estudos de impacto, com diagnósticos territoriais. Criar gabinetes técnicos permanentes. Estabelecer um compromisso público com metas de desempenho e resultados.

c) Abrir-se à sociedade

Instituir círculos participativos: assembleias populares, fóruns juvenis, consultas digitais. Promover uma política que ouve antes de decidir, e que decide com quem vive o problema.

d) Transparência interna

Divulgar as contas partidárias. Estabelecer mandatos temporais e rotativos nas direcções. Promover debates internos e respeitar o contraditório. Como dizia Norberto Bobbio, “a transparência é a alma da democracia.”

e) Formar quadros

Criar escolas de formação política contínua — com pensamento estratégico, ética pública, uso de tecnologias, gestão de projectos e leitura crítica do mundo. Uma política sem formação será sempre uma política frágil.

6. Conclusão: partidos com raízes ou democracia de papel?

A política angolana precisa de uma travessia ética. Não se trata apenas de disputar o poder, mas de redignificá-lo. Os partidos devem sair dos seus escritórios climatizados e ir ao bairro, ao campo, à feira, à igreja, ao musseque — e ouvir, sentir, reconstruir.

Porque, como dizia Frantz Fanon, “cada geração tem uma missão histórica. Ela a cumpre ou a trai.” Os partidos políticos de hoje — tanto os no poder como os da oposição — serão julgados não pelos seus discursos, mas pela sua capacidade de servir o bem comum.

Se continuarem a ignorar a ideologia, improvisar os projectos e instrumentalizar o povo, a democracia morrerá lentamente. Mas se tiverem coragem de se reformar, de assumir causas, de construir pontes reais com o cidadão, então poderão transformar a decepção em esperança — e o cansaço em movimento.

Deixar uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Exit mobile version