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Crónica ideal ao Domingo

“O meu desejo é morrer”

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Por: Edson Kassanga

Quando me descubro a colar o olhar a objectos, eventos, cenários, expressões, ou o que for, tenho a tendência de desenrolar o novelo do tempo para re(a)cordar as circunstâncias em que tive o primeiro encontro com essas coisas. Viajo com os pés envolto a um absoluto descanso para espaços cujos traços, outrora sobremaneira (re)conhecidos por mim, a sucessão incessante dos dias arreigou-lhes outros nós. Ainda assim, as lembranças permanecem no centro das sensações, no quartel general das reflexões. Às vezes, a cernelha memorial só cede recinto às refulgentes e altaneiras labaredas no troço de tempo em que tropeço em algo aparentemente vago.

“Menino de rua
A rua é tua
Só tens a liberdade de sonhar
Com a lua
Menino de rua
A rua é tua
Só tens a liberdade de sonhar
Com a lua”

Aí está exposto o excerto duma queta ainda existente na katchimonia dos mangolés que nos cadiucos seis anos do século XX já tinham alguma lucidez ou mestria em memorização. Eu não sei de qual das cabaças eu era conteúdo, contudo ainda resiste na minha memória o contexto em que as minhas células ciliadas se viram vinculadas ao som dessa música mui penetrante pela pioneira vez.

O alcance dos dois dígitos ainda era quimera para a idade que eu detinha, mas aluno eu já era da escola primária 370 e morava na moradia do meu tio Raimundo (situada na cidade onde o Liceu Diogo Cão deu lições ao Pepetela, Savimbi e ao Kundi Paihama). Foi através de seu televisor de marca Nokia que, frequentemente após o telejornal, eu assisti(a) ao videoclipe dessa canção na companhia dos demais integrantes que se pode imaginar de uma família alargada.

A imagem não era doce ao olhar, dado o facto de dar a ver o grito silente de entes que nem a mais ínfima réstia de sangue tinham sobre as tenras mãos. As crianças não possuíam nem uma culpa pela irresponsabilidade de seus progenitores; pela perpetuação da peleja armada que apertava a corda colada ao pescoço de Angola e pelos tantos outros ventos que as arrastaram ás ruas.

Porém, o embalo da música apresentava-se irresistível e electrizante e marcante. Já houve instantes em que eu cobria de preto os olhos para somente senti-la mais, mais, mais, mais e um pouco mais. O diálogo entre a sua composição, melodia e instrumentalização davam azo a um espectro do qual a meu corpo não conseguia prevalecer indiferente. Os meus pelos em estado incipiente colocavam-se em pé; as indolores borbulhas diminutas pouvilhavam dilatadas áreas da pele dos meus membros; eu pressentia as lágrimas da cor do encanto a espreitarem o mundo a partir dos cantos das minhas pequenas e cristalinas vistas; enfim, tudo em mim era mimonsamente absorvido pela música que apenas bwé de anos depois, enquanto eu escutava o programa Dia Novo nas ondas hertezianas da Rádio Nacional de Angola, pude então ter o interesse ou o nível de maturidade cognitiva suficientes para gravar o nome de seu autor.

O “Menino de Rua”, música de autoria de Né Gonçalves, não tocou e retocou apenas o meu coração na época do calção roto no rabo ou seja, durante a vigência da minha infância. Em consonância com alguns sites, ele foi um sucesso tão estrondoso cujas réplicas foram reconhecidas e enaltecidas dentro das bordas da terra angolana. Em 1994, a Rádio Nacional de Angola considerou essa música como a Música Do Ano. Entretanto, o impulso da carreira de seu autor não teve aí o seu fim. No mesmo ano, a União Nacional dos Artistas e Compositores atribuiu a Né Gonçalves o Prémio Revelação em consideração ao seu álbum de estreia, “Luanda Meu Semba”, no qual é parte a música “Menino de Rua”.

Por via de regra, quando as vibrações, visões, paladares, odores ou sons trazem até mim informações que apontam para o dia a dia dos meninos de rua, eu lembro-me dessa música, porque foi nela que eu compreendi a expressão “menino de rua” pela primeira vez. Há muitos diminutos dias, recordei-me dela e das circunstâncias do nosso primogênito contacto devido ao deleite que conservo em estar a par da sempre evolutiva indústria do cinema.

Neste mês consagrado aos infantes, estava eu a reviver as reminiscências da minha infância durante os latos minutos em que assistia a um filme no recinto mais santo de meu casulo -compartimento onde me sintonizo com quem transfere para o papel a cor, a forma e o aroma de sua alma. É um filme bastante absorvente, a julgar pela peculiaridade da estória e, essencialmente, pelas viscerais reflexões que o mesmo suscita ao espectador. Trata-se precisamente de um drama turco, estreado a 12 de Março de 2021 na plataforma NETFLIX, intitulado “Vidas De Papel”.

O mesmo reporta as vivências de Mehmet, jovem na casa dos 30 anos e gerente de uma micro-empresa virada à recolha de lixo em Istambul, que no fim de expediente dum dia ditoso encontra um menino, a parcos anos de atingir uma década de idade, no interior de um dos carros manuais usados pelos seus subordinados para transportar lixo, sobretudo papel. Nos instantes preliminares, ele denuncia com veemência a intenção levar Ali, o menino achado, para junto de sua família. No entanto, logo logo vê-se obrigado a ser condescendente, reavaliando as consequências extremas da devolução, quando esse disse-lhe, entre lágrimas salpicadas com súplicas e amostras de hematomas, que o seu padrasto batia-o de modo assaz desumano que sua mãe teve de colocá-lo num carro de lixo, porquanto já não suportava observar impotentemente tanto sofrimento. Nesse contexto de pretos tons começa a relação de duas pessoas separadas pelas idades cronológicas, porém profundamente unidas pelas mesmas feridas, pelas mesmas necessidades afectivas e pelos mesmos arqui-sonhos.

Em vez de Mehmet devolver Ali, decide esperar que o dito melhor remédio traga-lhe as resoluções mais adequadas ou menos lesivas para o petiz e, talvez, para si próprio. No decurso desse espaço temporal, o jovem perpassa a cuidar da criança feito carne de sua carne, sangue de seu sangue. Mehmet integra Ali no seu trabalho, insere-o na convivência de outros miúdos pelos quais se sente parcialmente responsável; partilha com ele momentos de cumplicidade e entretenimento; enfim, procura conhecer a alma sonegada naquela estrutura minúscula e delgada. Mas à medida que o gerente da micro-empresa vai conhecendo tal alma, nela descobre a criança que ele foi há tamanhos anos, uma criança que sofre pela ausência de sua mãe e que sonha um sonho que porventura somente a morte o poderá tornar real.

Numa noite que se pretendia unicamente de diversão, já que se realizava a comemoração do aniversário de Ali, Mehmet lança um olhar paterno a um menino (da mesma faixa etária do aniversariante e que, tal qual os outros ali presente, era menino de rua) e pergunta-lhe:
-Qual é o teu desejo?
-O meu desejo é morrer- responde o puto com os olhos inaptos em ocultar o lúgubre luzir.
Volvidos alguns segundos taciturnos de espanto, Mehmet tenta mostrar-lhe por palavras o quão equivocado está com esse propósito esquisito. De seguida, faz-lhe outra pergunta:
-Por que queres morrer?
-Sabe que minha mãe morreu quando eu era pequeno, né? – responde o candengue perguntando.
Sem escapatória possível, Mehemet diz que sim, esperando preocupado que o miúdo prosseguisse.
Por fim, no seu tom de voz inocente e exacerbadamente dolente, o rapaz diz:
-Se eu morrer mais velho, ela não vai-me reconhecer. Não vai mesmo, ne!?

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