Crónica ideal ao Domingo
O fascínio pela chuva na infância
Por: Edson Kassanga
A velhice entorpece a performance dos nossos sentidos e nos distancia das fantasias, dos sonhos e das paixões que tínhamos na era em que a fartura de inocência mantinha-nos com frequência na mesma frequência da felicidade, habilitando-nos a menosprezar qualquer perigo que estivesse próximo e pronto para nos encher de dissabores.
À medida que nos apartamos dessa era explicitamente designada de meninice, nossa disponibilidade e sensibilidade em realizar acções que levam os nossos corações a flutuarem sobre águas tranquilas, transparentes e cintilantes vão minguando a favor do que necessitamos para afastar da morte a chance de ela própria aproveitar a nossa fome para nos abraçar ou abraçar as pessoas que, de par em par, vão dependendo de nós.
Essa constatação causa tristeza, agrava o tom dos vincos que o tempo tracejou na nossa face. Mas quando descobrimos que apesar da velhice, nossa emoção ainda atinge o zénite por coisas pelas quais nos encantávamos na meninice, o nosso eu rejuvenesce.
A criança possui nos olhos a aparência da sua essência. A pura brancura nos seus olhos é uma amostra de sua lente transparente que lhe permite explorar, após identificar, fontes de deleite onde quer que ela esteja, inclusive nos recintos tenebrosos. Ela alberga em si uma singular maneira de se desprender das amarras amargas do passado conservando-se livre e leve para novos desafios, novas lições, novas conquistas, novas viagens, novas conexões e principalmente para novas gargalhadas. Ademais, a pureza presa nos olhos da criança vai de encontro à sua virtude de sentir o que as pessoas à sua volta estiverem a sentir. Em inúmeras ocasiões, ela supera a reflexão dos espelhos devolvendo um sorriso mais espontâneo, mais lustroso e mais electrizante.
Por essas razões que não são as únicas, a infância é tal qual o livro que gostaríamos de ler sem nunca desejarmos chegar às derradeiras palavras. Ao pensarmos nela, sentimos vontade de rodar os ponteiros do relógio, para o sentido contrário, com fito de reviver emoções que hoje nos fazem tanta falta e de reaprender lições que engordariam a fronteira existente entre nós e os animais.
Como era agradável andarmos aos “kwatas” com a sujidade para darmos forma, nome e fala ao barro/lodo que íamos buscar a mais de mil passos da nossa casa; como era hilariante sentarmos à beira da estrada ocupando carros que nem se quer os nossos pais tiveram nem sonhavam ter; como era doce a sensação de trazer vento ao rosto correndo sem prestar atenção às metas, aos adversários ou à plateia; como era inspirador olharmos para o céu estrelado e sonharmos com um porvir portentoso enquanto o peso do vácuo vergastava o nosso estômago; como era apaixonante eternizarmos o semblante de simpatia sobre a face depois de termos sido beijados pela donzela mais bela da escola; como era brilhante brindarmos a chegada das quedas pluviométricas de corpos ao relento e cobertos pela plena nudez; enfim, “nos kuyava” bwé termos a facilidade de observar e gozar o presente de modo tão fundo quanto diversificado escusando de dar importância ao fardo do passado, assim como ao receio pelo futuro.
Dentre essas nascentes de prazer, eu tive uma especialíssima preferência por um leque de ocorrências que tem como pano de fundo a chuva. A chuva era o espectáculo ímpar que eu gostava de apreciar de lés a lés. Geralmente através de uma vidraça virada a um vértice em que a vista parecia mais lata, eu fazia questão de me esvaziar para desfrutar das três fases desse espectáculo: antes, durante e depois.
Os instantes que precedem o espectáculo têm a aparência de um olhar fértil em interpretações, parecem caricias e talvez algo mais. A temperatura ambiente desce como respaldo da frescura advinda de terras não tão longínquas por intermédio do mesmo do vector do pólen, da poeira e das palavras “parladas” sobretudo ao relento: o vento. Nesse momento o céu fica cinzento. Na verdade, ele esconde-se atrás de um algodão doce tão extenso cujas camadas movem-se e sobrepõem-se formando diferentes tons de cinza que são iluminados de quando em quando por raios -raios cujo clarão propagar-se feito eco.
Como consabido, a derrocada das gotas de água demarcam a vigência do espectáculo (durante) das outras duas fases. Nessa fase, as gotas caiem do tremendo algodão doce numa sequência variável, pintando de verde os corações (e não só) fustigados pela cor amarela. Ao mesmo tempo, o algodão doce cresce e parte dele desfaz-se gerando camadas menos densas. Essas aproximam-se da superfície terrestre como se quisessem contar-lhe um boato secreto, bastante recente, enquanto abrandam a visibilidade das variegadas estruturas sobre a mesma.
A descrição do cenário após o espectáculo possui semelhanças com a primeira fase. Para além disso, o céu perde a timidez e então decide pedir desculpas à terra exibindo uma performance colorida. Algumas nuvens desintegram-se e outras são arrastadas pelo vento para outros pontos. A nudez toma quase todo céu e esse aproveita o ensejo para dar a ver o arco-íris com a ajuda do maior astro. Assim, percebe-se que essa apresentação multicolor não pode materializar-se às costas do sol, ou seja, é impossível ter lugar à noite.
Nunca me senti indiferente perante a chuva quando eu era candengue. O entusiasmo possuía-me ao máximo, colocando meus pêlos em pé, quando eu sentia a fresca ventania com fragrância similar a água; quando eu vislumbrava os arbustos atónitos tentando seguir as passadas da ventania; quando a terra era estremecida e alumiada num relance devido aos relâmpagos; quando as gotas de água devolviam pulcritude e vivacidade às plantas; quando as sete cores uniam-se no céu em forma de semi-circunferência.
Consequentemente, eu testemunhava o meu renascimento. O grau de sensibilidade de todos os meus sentidos ascendia ao ápice, meu coração extrapolava de esperança e a sensação de ser hábil para fazer tudo fervilhava dentro de mim. Por esses motivos, a chuva é a paixão mais vigorosa que tive no decurso da minha infância.
De lá para cá, tantos anos perpassaram e a imensidão da travessia fez de mim um matulão. Obviamente, além de eu passar a custear as despesas dos meus caprichos e das minhas necessidades essenciais, as minhas responsabilidades fomentaram fundamentalmente por conta dos compromissos que tive de assumir com a família, com a sociedade e com a pátria.
Logo, já não tenho a mesma sensibilidade e disponibilidade para as paixões da meninice. A isso há que acrescer a existência de coisas que já não ficam bem a alguém da minha idade. Mesmo que tentasse, o corpo já não aguentaria a pedalada. Ele está a envelhecer e essa não é uma revelação a qual se chega de sorriso lustroso. Mas quando S. Pedro abre as torneiras, algo em mim transmuda. Nessa ocasião, felizmente, certifico que ainda conservo a paixão pela chuva. Com feito, a ela junta-se as amenas memórias da minha meninice e a sensação de renovação instala-se no meu corpo, na minha alma.
Em resumo, a vida dá lições que conduzem a concluir que a felicidade é um sentimento ao qual a inocência e a capacidade de sentir entusiasmo em múltiplas circunstâncias contribuem sobremaneira. E a criança dispõe em abundância desses dois elementos sem recorrer a livros de auto-ajuda nem às jornadas científicas.
Enquanto candengue, eu tive uma intensa paixão pela chuva. Felizmente, ainda nutro o mesmo sentimento por ela não obstante aos encargos decorrentes da vida adulta. E tem sido em função dele que eu renasço quando observo a chuva cair. Para terminar, é primordial salientar que não é por acaso que expressiva franja dos adultos cujas idades fisiológicas são mais novas em relação às idades cronológicas conservam certas paixões oriundas da meninice (contudo, sem essas beliscarem a idoneidade dos mesmos).
EM HOMENAGEM A ROBERTO MORAIS, UMA DAS PESSOAS MAIS COMPLETAS COM QUEM TENHO A PRIMAZIA DE PRIVAR.