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Memórias são necessárias!

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Certo dia fui ao museu da escravatura com minha esposa de origem estrangeira, nascida do outro lado do oceano; resolvemos ir até o museu da escravatura para que ela pudesse ver de perto a história de nossos antepassados levados a atravessar o Atlântico.

Na estrada, avistamos de longe a bela capela no alto do monte, de frente ao mar. Sua beleza externa escondia por dentro duras memórias dos homens pretos que embarcavam no revolto mar; tão revolto que ao ver seus guerreiros embarcando para terras desconhecidas, sussurrava e rugia com suas ondas azul turquesa.

Eu esperava encontrar um museu repleto de pessoas interessadas em intensificar suas memórias e recordações de um passado não tão distante e sombrio que atormentou nosso povo, esperava ver ali famílias, uma mistura de gerações interessadas pela história de nosso povo. Para minha surpresa, o museu estava vazio; sozinhos nos lançamos museu adentro para exploração de memórias angustiantes mas necessárias para que se encare o presente com grandeza e sabedoria. Trinta minutos depois, fomos surpreendidos por uma jovem amável que se apresentou como guia do museu e fomos convidados para uma nova jornada de exploração.

Decerto, o ato de exploração revelou-se outra tremenda decepção: o museu era vazio e descabido de história; é lamentável o estado deste lugar considerado como santuário da história nacional. Ora, o que me parece é que desistimos de compreender o que aconteceu em nosso passado recente em nome de olhar para o futuro. Como construiremos uma história diferente dos acontecimentos passados sem que olhemos para ele? Como evitaremos que a escravidão pós-moderna nos domine se não tivermos memórias do passado?

O silêncio ensurdecedor que tomava conta do lugar não era motivado pelas reflexões que se faziam por parte daqueles que ali se encontravam para trazer à memória histórias que não podem ser esquecidas; pelo contrario, era um silêncio causado pela falta de interesse por parte da sociedade angolana em valorizar seu passado e sua cultura. Ora, como podemos esperar que a nova geração conserve nossa cultura se não existem memórias a respeito dela? Qual futuro glorioso se espera dessa nova Angola que não guarda memórias a respeito de seu passado? É através desse tipo de amnésia cultural e histórica que nos tornaremos um povo sem identidade cultural e sem história.

Esse episodio me trouxe a memória o drama pós-apocalíptico da autora norte-americana Lois Lowry, intitulado O Doador de Memórias (The Giver). O livro retrata uma comunidade vivendo de maneira estável onde o segredo desta solidez de vida era a inexistência de memórias a respeito do passado. Para eles o mundo antigo tombado pela guerra, pela inveja, pela desigualdade não existia, palavras como sofrimento não faziam parte de seu dicionário, aliás, só o presente e o futuro importavam. Ou seja, nada de pensar no que se passou. O único que detinha memórias era o velho doador; ironicamente, aquele que possuía memórias do passado era tido como o mais sábio da comunidade e as memórias deveriam ser usadas para guiar a comunidade em sabedoria.

Ora, é preciso entender que não se constrói uma sociedade de paz, segurança e felicidade sem olhar para o passado; decerto, a melhor maneira de encarar o sofrimento é olhar para as memórias do passado. Em nosso contexto isso significa olhar para as lembranças trágicas que o museu nos faz recordar. Ele é o nosso doador de memórias.

Outrossim, é necessário que se aposte na promoção da nossa história, ela é parte da formação da nossa cultura. E aqui lanço um apelo para o super e recém criado ministério da cultura, turismo e ambiente no sentido de olhar para o nosso museu e valorizá-lo, permitir que se façam reformas e se melhore o acervo, porque é lamentável a pouca quantidade e qualidade do acervo do nosso museu.

Minha esperança é que após a pandemia do COVID-19, não fiquemos apenas ávidos em encher os shopping centers, espero que as visitas ao nosso museu estejam na lista dos nossos afazeres, principalmente no sentido de incentivar a nova geração de angolanos a conhecerem sua história.

 

*Tomás Camba, professor de Filosofia, Escritor e Ensaísta.

Professor de filosofia, escritor e ensaísta

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