Análise

Marcas nacionais em risco: o vazio das políticas públicas na protecção do capital criativo de Angola

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Em Angola, marcas como Cuca, Nocal, TAAG e Refriango representam muito mais do que simples bens de consumo. Elas transportam consigo histórias, memórias e significados que atravessam gerações inteiras, simbolizando identidade, resistência, capacidade de adaptação e o génio criativo do povo angolano. A sua permanência ao longo do tempo é um testemunho vivo de resiliência e de engenho nacional. No entanto, quando marcas desaparecem, como sucedeu com empresas icónicas da Província da Huíla, tais como a Água Mumuíla, a Gasosa Chela, Grande Hotel da Huíla, Livraria Lelo ou a Casa Azul, não se perde apenas um produto ou serviço; assiste-se à erosão de parte do capital simbólico e histórico, construído com esforço, dedicação e uma ligação profunda ao território e à comunidade.

Este fenómeno não é apenas uma questão económica ou comercial. Trata-se de um verdadeiro problema de soberania cultural e de continuidade histórica. As marcas integram o património imaterial de uma nação, assumindo um papel central na construção e afirmação da identidade colectiva. Proteger estas marcas e potenciar o seu valor exige uma abordagem estruturada através de políticas públicas estratégicas e de longo prazo, que promovam não só a sua sobrevivência, mas também o seu fortalecimento e expansão.

1. A Economia Criativa como Base de Diversificação e Resiliência

A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (CNUCED) reconhece que Angola possui um ecossistema criativo emergente, no qual coexistem startups, talento artístico, produção cultural e inovação tecnológica, com um enorme potencial para impulsionar a diversificação económica e promover um desenvolvimento mais sustentável. A directora interina da CNUCED, Miho Shirotori, sublinha que uma maior atenção política à inovação e à criatividade é fundamental para a diversificação económica e para a construção de um crescimento sustentável e inclusivo.

No entanto, este potencial criativo esbarra em limitações estruturais, nomeadamente na fragilidade dos mecanismos de registo e protecção da propriedade intelectual. O estudo da CNUCED alerta para a ausência ou insuficiência de registos formais de direitos autorais, marcas e patentes, situação que deixa vulneráveis as criações nacionais e reduz a capacidade competitiva interna e externa.

A economia criativa, como refere John Howkins, é uma das áreas de crescimento mais rápido no mundo contemporâneo, responsável por novas formas de emprego, exportação e influência cultural. Países que estruturaram políticas públicas específicas para este sector colhem hoje resultados em termos de prestígio internacional, receitas de exportação e reforço da sua marca-país.

2. Propriedade Intelectual: Um Pilar Jurídico em Consolidação

O Instituto Angolano da Propriedade Industrial (IAPI) tem procurado modernizar a sua actuação, adoptando a digitalização de processos, criando um portal online para registos de marcas, patentes e insígnias e apostando na capacitação técnica dos seus quadros. Estas medidas têm permitido aos criadores e empreendedores um acesso mais rápido e inclusivo às ferramentas de protecção legal.

Entre 2021 e 2023, foram registadas mais de catorze mil e seiscentas marcas, número que demonstra um crescente reconhecimento por parte dos empresários e criadores do valor estratégico da propriedade industrial em Angola. Com o apoio da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), o país encontra-se a implementar o sistema IPAS (Industrial Property Administration System), que trará mais agilidade, transparência e qualidade na gestão dos processos.

A jurista Vera Albino destaca que, embora a legislação angolana ainda não preveja obrigações específicas para a protecção das marcas notórias, a adesão de Angola à Convenção de Paris garante mecanismos adicionais para salvaguardar marcas de elevado prestígio. Este enquadramento jurídico permite ao IAPI recusar registos que possam infringir direitos adquiridos e assegurar a integridade das marcas que representam parte significativa do património simbólico do país.

3. A Legitimação de Marcas de Prestígio e o Valor da Responsabilidade Social

Uma marca não constrói o seu prestígio apenas através da qualidade do produto ou serviço que oferece, mas também pela forma como se relaciona com a sociedade. As marcas que investem em programas de responsabilidade social, que apoiam causas ambientais e culturais e que desenvolvem narrativas coerentes com os valores do consumidor conquistam uma lealdade emocional duradoura. Este vínculo intangível, segundo David Aaker, é um dos elementos mais poderosos para assegurar vantagem competitiva e longevidade no mercado.

No contexto angolano, a TAAG é um exemplo paradigmático. Para além de prestar um serviço de transporte aéreo, a companhia aérea investe em iniciativas culturais e desportivas que reforçam o seu prestígio e ampliam a sua presença simbólica na vida nacional. Esta associação entre a marca e o desenvolvimento social e cultural não apenas a fortalece no mercado, como também a protege de ataques concorrenciais.

4. Articulação Cultural, Territorial e Criativa

A protecção e valorização das marcas nacionais deve integrar-se num plano mais amplo de desenvolvimento territorial e cultural. Organizações como a Companhia de Artes Horizonte Njinga Mbande, que mantém actividade desde 1986, mostram que a persistência criativa consegue resistir a crises económicas e a mudanças políticas profundas. Do mesmo modo, a Associação Tchiweka de Documentação desempenha um papel fundamental na preservação da memória nacional e na manutenção do capital simbólico angolano.

No cenário internacional, a experiência da Islândia merece destaque. O Centro Tecnológico da Islândia (CTIC) desenvolve parcerias estratégicas com instituições culturais e fundos soberanos para digitalizar e valorizar o património imaterial, transformando-o num activo económico e turístico. Em Angola, um modelo semelhante poderia ser aplicado através do Fundo Soberano, em colaboração com o Ministério da Cultura e o Ministério do Turismo, digitalizando o património cultural material e imaterial para fins educativos, turísticos e de exportação cultural.

5. Propostas de Intervenção Estruturada

A defesa das marcas nacionais não pode limitar-se a acções isoladas ou reactivas. É essencial a adopção de um plano estratégico integrado, com medidas concretas como:

1. Criação de incentivos fiscais, linhas de crédito e programas de apoio directo para criadores que registem e promovam marcas nacionais.
2. Implementação de um sistema de certificação “Feito em Angola” que valorize produtos e serviços com forte ligação ao capital cultural e às identidades regionais.
3. Orientação das compras públicas para a aquisição de bens e serviços criativos e inovadores de origem nacional, dinamizando a economia interna.
4. Inclusão de disciplinas sobre branding, marketing territorial e economia criativa nos programas de ensino superior e nos centros de inovação tecnológica.
5. Estreitamento da cooperação interministerial entre Cultura, Turismo, Indústria, Comércio e Finanças, evitando a duplicação de esforços e a fragmentação de políticas.
6. Reforço das acções de combate à contrafacção, com recurso a tecnologias avançadas e parcerias internacionais, nomeadamente com a EUIPO e com institutos nacionais de propriedade industrial de países de referência.

Finalmente, é importante referir, que proteger e valorizar as marcas angolanas é, acima de tudo, investir na própria alma do país. É preservar memórias colectivas, estimular a inovação, reforçar a competitividade e assegurar a soberania cultural e económica. Cada marca que conseguimos manter viva é um capítulo da nossa história que continua a ser escrito com orgulho e com identidade.

Se Angola deseja verdadeiramente caminhar para uma economia diversificada, resiliente e inclusiva, é urgente que as políticas públicas passem a reconhecer o valor das marcas como parte integrante do património estratégico nacional. Este capital intangível é tão relevante quanto os recursos naturais como o petróleo ou os diamantes, com a vantagem de ser renovável, sustentável e profundamente ligado à essência e ao espírito do povo angolano.

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