Opinião
Lei de Terras em Angola: o desafio de equilibrar desenvolvimento e justiça social
A gestão das terras em Angola continua a ser um tema central no debate sobre o desenvolvimento económico, social e territorial do país. A Lei de Terras, embora essencial para a organização fundiária, tem mostrado lacunas significativas na sua implementação, o que gera conflitos de posse e uma utilização desordenada do solo. A realidade urbana e rural do país reflete a necessidade urgente de repensar a legislação vigente, incorporando novos modelos de gestão que promovam o acesso equitativo à terra, respeitem os saberes comunitários e se alinhem com as boas práticas internacionais. O ordenamento territorial, com o uso de planos directores e o fortalecimento da actuação das autoridades tradicionais, torna-se imprescindível para garantir um crescimento sustentável, inclusivo e harmonioso.
1. A Realidade Actual da Gestão das Terras em Angola
A gestão da terra em Angola continua a ser um dos maiores entraves ao desenvolvimento local, à justiça social e à atracção de investimentos. A ausência de uma reforma fundiária moderna, inclusiva e estruturada está na base de muitos conflitos de posse, expansão urbana desordenada e marginalização das comunidades. Embora a Constituição reconheça a terra como propriedade originária do Estado, na prática, o Estado tem sido ausente na regulação efectiva do uso e distribuição das terras, especialmente nas zonas periurbanas e rurais. Isso tem levado à proliferação de ocupações informais, loteamentos ilegais, especulação fundiária e conflitos entre cidadãos, empresas e autoridades tradicionais.
Em resposta a este cenário, é imperativo repensar a Lei de Terras, de forma a integrar uma visão estratégica do território, promover a inclusão dos saberes comunitários e aprender com modelos internacionais que possam ser adaptados à realidade angolana.
2. Planos Directores: O Caminho para Cidades Ordenadas e Municípios Competitivos
A ausência de planos directores municipais e comunais tem sido um dos principais factores que contribuem para o caos urbanístico em muitas cidades angolanas. Estes instrumentos de ordenamento do território, previstos na Lei do Ordenamento do Território e Urbanismo (Lei n.º 3/04, de 25 de Junho), devem deixar de ser peças burocráticas e tornar-se ferramentas vivas de planeamento local.
Com planos directores eficazes, torna-se possível prever áreas para habitação, comércio, zonas agrícolas e de conservação ambiental. Estes planos não apenas ajudam a criar condições para investimentos estruturados, mas também melhoram a qualidade de vida das populações. A sua elaboração deve envolver técnicos, académicos, sociedade civil e, sobretudo, as comunidades locais, garantindo que todos os interesses sejam representados e que a gestão do território seja feita de forma participativa e equilibrada.
3. Autoridades Tradicionais: Guardiãs da Terra Comunitária
As autoridades tradicionais desempenham um papel histórico e social fundamental na mediação e gestão das terras nas zonas rurais e periféricas de Angola. No entanto, a sua actuação continua muitas vezes à margem da lei ou com reconhecimento limitado. Uma reforma fundiária inclusiva deve reconhecer e valorizar a actuação dessas autoridades como representantes legítimos das comunidades.
Como afirma o académico angolano Mário Pinto de Andrade, “não se pode fazer democracia ignorando a memória e os modos de organização autóctones das populações”. Nesse sentido, a gestão comunitária da terra deve ser formalizada, integrada nos sistemas locais de governação e respeitada como uma ferramenta essencial para o desenvolvimento territorial sustentável.
4. O Que Angola Pode Aprender com a China, Brasil e África do Sul
A experiência internacional pode fornecer lições valiosas para Angola. A China, por exemplo, tem mostrado como o planeamento rigoroso e a alocação estratégica da terra são fundamentais para o crescimento urbano e industrial. O Brasil, com o seu programa de regularização fundiária urbana e rural, como o “Minha Casa, Minha Vida” e o “Terra Legal”, tem promovido a inclusão social e a segurança de posse. Já a África do Sul, com as suas políticas de restituição de terras e justiça redistributiva pós-apartheid, tem trabalhado para promover a reconciliação e dignidade das comunidades através da terra.
Angola deve adaptar essas boas práticas à sua realidade, priorizando o mapeamento digital das terras, a justiça fundiária, a promoção da agricultura familiar e a integração entre o plano físico, económico e social.
5. Tribunais de Comarca e a Urgência de Justiça Fundiária
A grande maioria dos conflitos de terra em Angola são resolvidos de forma informal ou ignorados pelas instituições formais. Para que a justiça fundiária seja eficaz, é necessário capacitar os tribunais de comarca com secções especializadas em matéria fundiária e aproximar a justiça das comunidades. Como bem afirmou o jurista Boaventura de Sousa Santos, “sem justiça acessível, o direito torna-se um privilégio dos mais fortes”. A criação de tribunais especializados e a promoção de uma justiça célere e acessível são essenciais para resolver os conflitos fundiários de forma justa e equitativa.
6. Uma Nova Lei de Terras para um Novo Ciclo de Desenvolvimento
A actual Lei de Terras precisa de ser revista com urgência. A nova legislação deve reconhecer a diversidade de contextos (rurais, urbanos, comunitários, empresariais), articulando-se com os planos directores, promovendo a justiça redistributiva e aproveitando a inovação tecnológica, como o cadastro digital nacional. Somente assim será possível assegurar que a terra seja distribuída de forma justa e equitativa, respeitando as necessidades das comunidades e promovendo o desenvolvimento sustentável.
Não há transformação económica sem terra. Não há justiça social sem acesso equitativo à terra. E não há futuro sustentável se continuarmos a gerir a terra como um bem sem dono.
Finalmente, a revisão da Lei de Terras em Angola é um passo imprescindível para a criação de um sistema fundiário justo, organizado e inclusivo. A implementação eficaz de planos directores municipais e comunais, aliada ao reconhecimento da autoridade das lideranças tradicionais, pode garantir um equilíbrio entre as necessidades de desenvolvimento urbano e rural. Além disso, a adopção de boas práticas de países como a China, Brasil e África do Sul pode ajudar Angola a superar desafios históricos na gestão da terra e a promover a paz social, a justiça fundiária e o crescimento económico. O futuro de Angola depende, em grande parte, de como o país vai gerir a sua terra, assegurando que ela seja um bem comum e acessível a todos os seus cidadãos.