Análise
Justiça tradicional digitalizada: autonomia comunitária ou apropriação estatal?
1. Introdução: entre a tradição e a modernidade
O Poder Tradicional em Angola é um pilar silencioso, mas incontornável, da estrutura social e política nacional. Trata-se de uma instituição que sobreviveu à colonização, à guerra civil e aos processos de modernização centralizada do Estado. Apesar de não estar presente nos circuitos mais visíveis da administração pública, continua a exercer um papel determinante na resolução de conflitos, na mobilização popular, na regulação comunitária e, sobretudo, na mediação entre o Estado e o cidadão comum.
A coexistência entre o Estado formal e os sistemas tradicionais de autoridade é uma característica comum em vários países africanos. Mahmood Mamdani (1996) descreve este fenómeno como uma “governação bifurcada”, onde a legalidade estatal convive com a legitimidade consuetudinária. Em Angola, essa bifurcação manifesta-se nas zonas rurais e periurbanas, onde os sobas, regedores e outros líderes tradicionais são os primeiros (e muitas vezes os únicos) interlocutores entre o cidadão e o poder público.
2. Reconhecimento jurídico e limites operacionais
A aprovação da Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro, que estabelece o Estatuto do Poder Tradicional, representou um marco importante no processo de valorização jurídica destas lideranças. Esta norma reconhece o Poder Tradicional como parte integrante da organização social do Estado angolano, com competências nas áreas de cultura, mediação de conflitos, gestão do território comunitário e promoção do desenvolvimento local.
Contudo, o reconhecimento legal não se traduziu automaticamente em reconhecimento funcional. Na prática, o Poder Tradicional continua distante dos sistemas formais de gestão pública, de registo civil, de planeamento territorial e, sobretudo, dos mecanismos institucionais da Justiça. A ausência de sistemas integrados de informação, a precariedade das infra-estruturas tecnológicas e a falta de formação técnica continuam a limitar profundamente a capacidade de actuação destas lideranças no século XXI.
3. A digitalização como instrumento de integração e desenvolvimento
A digitalização do Poder Tradicional deve ser encarada como uma estratégia de fortalecimento da governação local, da coesão territorial e da cidadania participativa. Não se trata de transformar os sobas em funcionários públicos, nem de homogeneizar práticas culturais distintas, mas de construir pontes digitais entre o Estado e os sistemas tradicionais de autoridade.
Segundo Janowski (2015), o e-Government deve promover a inclusão, a transparência e a eficácia, mas só será funcional se for sensível à diversidade cultural e institucional dos contextos locais. Por isso, a digitalização do Poder Tradicional deve respeitar os seus valores fundacionais, os seus modos de organização, e a sua autonomia relativa, enquanto o integra de forma segura, transparente e colaborativa no tecido institucional do Estado.
4. Potenciais ganhos para a Governação Local
A integração digital do Poder Tradicional pode impulsionar vários eixos da governação local:
Registo digital de lideranças e comunidades: Um sistema nacional com dados biométricos, histórico sucessório, delimitação territorial e funções exercidas por cada autoridade tradicional, permitiria maior controlo, visibilidade e planeamento integrado.
Plataforma de comunicação com administrações locais: Permitiria aos sobas acederem a informações administrativas, partilhar relatórios comunitários, submeter projectos e receber orientações de forma ágil e transparente.
Sistema de apoio à mediação comunitária: Digitalização das actas de julgamentos consuetudinários, emissão de termos de reconciliação e de posse tradicional de terras, criando um repositório de jurisprudência tradicional.
Inclusão no planeamento do território: O mapeamento digital das zonas de influência tradicional com apoio de drones, SIG e georreferenciação fortaleceria o diálogo entre o saber local e a ciência cartográfica.
Formação contínua e capacitação digital: Com acesso a plataformas de ensino à distância, os líderes tradicionais poderiam actualizar os seus conhecimentos em gestão comunitária, direitos humanos, justiça e governação digital.
5. Poder Tradicional e Administração da Justiça: Rumo a um modelo híbrido e inclusivo
A Justiça em Angola enfrenta desafios estruturais: excesso de morosidade, baixa capilaridade nas zonas remotas, fraco acesso à informação jurídica e défice de confiança institucional. Neste cenário, o Poder Tradicional representa um actor-chave no acesso à justiça de proximidade, resolvendo diariamente litígios de natureza familiar, patrimonial, fundiária e civil, com base em normas consuetudinárias.
Como observa Boaventura de Sousa Santos (2007), o pluralismo jurídico é uma característica natural das sociedades pós-coloniais, onde coexistem diferentes fontes de autoridade normativa. Ao integrar as autoridades tradicionais na Administração da Justiça, o Estado pode reduzir o congestionamento judicial, aumentar a legitimidade das decisões e oferecer justiça culturalmente adequada.
No modelo de Justiça Electrónica (e-Justice), propõe-se:
Interface entre o sistema judicial formal e as decisões comunitárias;
Base de dados dos julgamentos consuetudinários, com documentação electrónica das actas e acordos;
Acesso das Defensorias Públicas e Ministérios Públicos aos dados das comunidades, promovendo sinergias entre justiça formal e informal;
Emissão de certificados e declarações comunitárias reconhecidas legalmente, através de sistemas de certificação digital.
A interligação entre a justiça do Estado e a justiça tradicional deve ocorrer com base no respeito aos direitos fundamentais, à Constituição e às normas internacionais de direitos humanos, assegurando que a consuetudinária não se torne refúgio para práticas abusivas.
6. Modelos Comparados: Lições Regionais e Internacionais
A África do Sul oferece um bom exemplo de integração progressiva do poder tradicional no modelo de e-Government. O governo sul-africano desenvolveu a plataforma Traditional Leadership and Governance Framework Act com interface digital, para registo e comunicação entre líderes tradicionais e instituições públicas.
No Quénia, o sistema Huduma permite aos cidadãos aceder a serviços públicos digitais com apoio de líderes comunitários, que funcionam como mediadores entre o Estado e o povo.
Estas experiências provam que a inclusão digital das lideranças tradicionais é não apenas possível, mas desejável. Ela amplia a cidadania activa, aproxima o Estado das comunidades e reduz os níveis de informalidade nas relações entre os cidadãos e as instituições.
7. Desafios operacionais e caminhos de superação
A construção de um modelo nacional de digitalização do Poder Tradicional em Angola deve considerar múltiplos desafios:
Desigualdade de acesso às TICs;
Alto índice de analfabetismo digital em zonas rurais;
Baixo investimento em infra-estruturas comunitárias;
Ceticismo institucional em relação à autoridade consuetudinária.
Para superá-los, é necessário:
Desenvolver projectos-piloto regionais, com apoio técnico de universidades e ONGs;
Mobilizar financiamento do Estado, de empresas tecnológicas e de organismos multilaterais (ex. BAD, PNUD);
Criar centros de inclusão digital comunitária geridos pelas administrações locais em articulação com os conselhos de sobas;
Incluir o tema nos programas nacionais de governação electrónica, modernização da Justiça e desenvolvimento rural.
8. Um modelo angolano de e-Government tradicional
Propõe-se a criação de um modelo próprio, culturalmente ajustado e tecnicamente viável, assente nos seguintes pilares:
Legitimidade tradicional reconhecida juridicamente;
Tecnologia acessível, móvel e multilingue;
Formação contínua, com base em pedagogias locais;
Infra-estrutura partilhada entre órgãos locais e comunidades;
Articulação permanente entre cultura, Estado e desenvolvimento.
Este modelo deve ser liderado pelos Ministérios da Administração do Território, Justiça, Cultura e Telecomunicações, com envolvimento directo dos governos provinciais, das universidades, das empresas tecnológicas nacionais, das organizações tradicionais e das comunidades.
9. Conclusão: por uma Angola digitalmente ancestral
Digitalizar o Poder Tradicional é reconciliar Angola com a sua ancestralidade e projectá-la no futuro. Trata-se de reconhecer que as raízes da nossa governação não estão apenas no Diário da República, mas também nas assembleias sob árvores, nos conselhos dos anciãos, nas normas orais que regulam o quotidiano das aldeias e bairros.
Segundo Castells (2001), a informação é o novo poder na era digital. Mas, em Angola, este poder só será legítimo se for inclusivo, plural e conectado com as identidades colectivas do povo. O futuro da governação digital angolana não pode ignorar os seus sobas.
Assim, digitalizar o Poder Tradicional não é um luxo tecnológico — é uma urgência democrática. É garantir que a justiça, a administração e o desenvolvimento caminhem com todos. É tornar a governação local mais eficaz, mais legítima e, sobretudo, mais angolana.