Análise
Israel, Qatar e a diplomacia em colapso
O ataque aéreo de Israel em Doha, não foi apenas mais um episódio no conflito do Médio Oriente. É um marco simbólico que redefine o equilíbrio da diplomacia regional e expõe as fragilidades de um sistema internacional cada vez mais incapaz de conter a lógica da força. Pela primeira vez, Israel atacou diretamente em solo catariano, eliminando figuras relevantes do Hamas e provocando vítimas colaterais, incluindo um agente da segurança do Catar.
A mensagem israelita é clara: as negociações de cessar-fogo são irrelevantes perante a sua estratégia de eliminação selectiva. Esta decisão, assumida publicamente por Netanyahu como “operação inteiramente israelense e justificada”, rompe com o papel do Qatar como mediador credível, mina as pontes diplomáticas com Washington e lança dúvidas sobre o futuro da própria mediação árabe.
Do ponto de vista do Direito Internacional, o ataque constitui uma violação inequívoca da soberania catariana, um atentado contra a Carta das Nações Unidas e um golpe direto na legitimidade das instituições multilaterais. António Guterres condenou de imediato, tal como França, Reino Unido e Alemanha. Mas a condenação internacional, por mais veemente que seja, raramente se traduz em mecanismos coercivos capazes de alterar o cálculo estratégico de Israel.
O mais preocupante é o efeito dominó: a radicalização do Hamas, o possível alinhamento de aliados regionais do Irão, a fragilização da política externa do Qatar e a erosão da confiança nas soluções diplomáticas. Em linguagem prática: o tabuleiro do Médio Oriente entrou numa fase de maior volatilidade, onde a previsibilidade desapareceu e a escalada se torna quase inevitável.
No plano geopolítico, Israel aposta numa leitura fria: prefere gerir a instabilidade permanente a conceder legitimidade a negociações que considera ilusórias. Mas essa escolha tem custos. Ao torpedear a mediação do Catar, abre espaço para atores mais radicais preencherem o vácuo diplomático. Ao desafiar abertamente os EUA, mesmo que avisados de antemão, expõe fissuras na aliança transatlântica. E ao atacar em território de um Estado soberano, dá corpo à tese de que a ordem internacional já não é regida por normas, mas por assimetrias de poder.
Para África, a lição é simples: a diplomacia tradicional, baseada em normas e convenções, está a ser substituída por uma geopolítica crua, onde o músculo militar prevalece sobre a negociação. O que se passou em Doha deve servir como alerta: nenhum Estado está imune à erosão da ordem multilateral.
A narrativa internacional será moldada pela memória deste ataque. Israel quis demonstrar capacidade e impunidade. O Qatar, por sua vez, emergirá como símbolo de fragilidade soberana. E nós, analistas, temos de reconhecer: a diplomacia não morreu, mas está ferida de morte.