Análise
Governo Provincial de Luanda à frente da TCUL: um passo errado para a cidade
A mobilidade urbana na Província de Luanda constitui um dos maiores desafios de governação e desenvolvimento da capital angolana, sendo simultaneamente um tema central para a sustentabilidade social, económica e ambiental da cidade.
Recentemente, o Ministro dos Transportes, Ricardo D’Abreu, anunciou que a gestão da Transporte Colectivo Urbano de Luanda (TCUL) passará para responsabilidade do Governo Provincial até ao final deste ano. Esta decisão foi justificada pelo governante com a necessidade de aproximar a gestão do transporte público das necessidades da população, argumentando que as administrações provinciais e municipais estão mais próximas dos cidadãos e, portanto, melhor equipadas para responder rapidamente às exigências locais.
Embora bem-intencionada, esta medida levanta sérias questões sobre eficiência, sustentabilidade financeira e capacidade de inovação na mobilidade urbana, à luz das melhores práticas internacionais e da experiência do setor privado.
Segundo o professor Vukan R. Vuchic, “o transporte público é um elemento essencial da urbanização de alta densidade, porque permite a realização de actividades diversas, enquanto o automóvel apenas beneficia os que o podem usar”. Em Luanda, onde a densidade populacional é elevada, as distâncias de deslocação são crescentes e a expansão urbana ocorre de forma desordenada, este princípio assume particular relevância.
1. Estado actual da mobilidade urbana em Luanda
A cidade de Luanda caracteriza-se por um sistema de transporte altamente informal e fragmentado. Autocarros privados, candongueiros, mototáxis e outros sistemas improvisados cumprem um papel essencial de mobilidade para milhares de cidadãos, mas operam fora de uma estrutura regulatória eficaz, o que resulta em múltiplos problemas:
1. Congestionamento crónico, as vias urbanas encontram-se saturadas, sobretudo nos horários de pico, aumentando o tempo médio de deslocação.
2. Baixa cobertura em áreas periféricas, bairros periféricos e municípios satélites permanecem mal conectados ao centro da cidade.
3. Insegurança e riscos para os utentes, a informalidade gera falta de fiscalização e acidentes frequentes.
4. Impactos ambientais elevados, veículos antigos e não regulados contribuem para a poluição do ar e emissões de gases de efeito estufa.
O professor David Banister, no seu livro Transport and Urban Development, afirma que “as ligações entre transporte, uso do solo e estrutura urbana são fundamentais para compreender os padrões de deslocação urbana e projetar cidades sustentáveis”. Em Luanda, porém, a desconexão entre localização das actividades económicas e oferta de transporte público de qualidade evidencia uma fragilidade estrutural que não será resolvida apenas pela transferência administrativa da TCUL para o governo provincial.
2. A transferência da TCUL para o Governo Provincial de Luanda: oportunidades e riscos
O Ministro dos Transportes anunciou que a gestão da TCUL será transferida para o Governo Provincial de Luanda, uma empresa estatal que opera desde 1988, atualmente com uma frota de 600 autocarros, dos quais apenas cerca de 100 estão em operação diária, transportando em média 10 mil passageiros.
A decisão pretende garantir uma gestão mais próxima dos cidadãos, mas existem riscos claros:
1. Ineficiência administrativa, a simples mudança de nível administrativo não corrige problemas estruturais de frota insuficiente, manutenção inadequada, planeamento deficiente de rotas e falta de capacidade financeira para modernização.
2. Sustentabilidade financeira duvidosa, actualmente, a bilhética da TCUL cobre apenas 48% dos custos operacionais, sendo os restantes 52% financiados pelo Estado. A experiência internacional mostra que a gestão pública directa tende a perpetuar défices, enquanto modelos de concessão privada ou público-privada equilibram melhor cobertura de custos e qualidade do serviço (Vuchic, 2005; Banister, 2008).
3. Limitação à inovação, governos provinciais podem ter menor capacidade de investir em tecnologia, sistemas de bilhete único, integração multimodal e planeamento dinâmico de rotas, elementos essenciais para tornar o transporte público eficiente e competitivo frente ao sector informal.
Neste contexto, é necessário questionar se a decisão de centralizar a TCUL na administração provincial é realmente uma solução estratégica ou apenas uma medida política de proximidade.
3. Experiências internacionais e lições aplicáveis a Luanda
A experiência global oferece lições importantes para orientar políticas de mobilidade urbana:
Vuchic destaca que modos de alto desempenho, metro, sistemas de carruagem ligeira e corredores exclusivos de autocarros, são essenciais para melhorar a eficiência e a qualidade de vida urbana.
Karel Martens introduz o conceito de justiça de mobilidade, defendendo que “o sistema de transporte deve garantir acessibilidade para todos, e não apenas melhorar os tempos de viagem dos que já se deslocam bem”.
Banister sublinha que “a sustentabilidade da mobilidade urbana depende de políticas que integrem acesso, modos activos, transporte público e redução da dependência do automóvel”.
Dessas reflexões resultam três princípios fundamentais:
1. Mobilidade como bem público, todos os cidadãos devem ter acesso a transporte seguro e eficiente.
2. Intermodalidade e integração entre modos, essencial para eficiência e conveniência.
3. Equidade na mobilidade, políticas devem beneficiar todos os grupos sociais, não apenas os mais privilegiados.
4. Estratégias alternativas: o papel do sector privado e gestão de rotas
Em vez de transferir a TCUL para gestão provincial, estratégias de participação privada e modelos híbridos podem gerar resultados mais sustentáveis:
1. Concessões e Parcerias Público-Privadas (PPP), empresas privadas operam linhas ou rotas específicas sob contratos de desempenho, cobertura mínima e manutenção de frota, garantindo competição saudável, qualidade no serviço e redução do peso financeiro sobre o Estado (Banister, 2008).
2. Gestão de rotas baseada na procura, o setor privado pode ajustar frequências e horários de forma dinâmica, utilizando dados de mobilidade para reduzir congestionamentos, otimizar tempo de viagem e aumentar eficiência operacional. Modelos sob demanda, inspirados em cidades como Bogotá, Nairobi ou Manila, mostraram sucesso na redução de tempo de espera e adaptação a padrões de deslocação variáveis.
3. Bilhetagem integrada e plataformas digitais, sistemas de pagamento digital e bilhete único entre modos, autocarros, metro, bicicleta partilhada, permitem gestão financeira transparente, redução de evasão de receita e maior comodidade para os utentes (Martens, 2017).
4. Formalização de operadores informais, candongueiros e mototáxis podem ser incorporados em redes concessionadas, com rotas e horários definidos, aumentando a inclusão social e a cobertura das periferias sem depender exclusivamente do transporte público estatal.
5. Benefícios de um modelo misto público-privado
Eficiência operacional superior, ajustando oferta à procura real da população.
Sustentabilidade financeira, com partilha equilibrada de custos entre Estado e operadores privados.
Melhoria na qualidade do serviço, incluindo frota moderna, manutenção e horários confiáveis.
Inclusão social ampliada, garantindo transporte a bairros periféricos e zonas de baixa renda.
Estímulo à inovação, com tecnologia aplicada à bilhetagem, rastreamento de frota e análise de rotas.
6. Desafios e riscos da estratégia mista
Apesar das vantagens, há desafios importantes:
Financiamento inicial elevado, modernização da frota e infraestrutura de corredores exclusivos requer investimento significativo.
Resistência à mudança, operadores informais e cidadãos habituados ao automóvel podem opor-se às novas regras e integração no sistema formal.
Coordenação institucional complexa, governo central, provincial, municípios e operadores privados devem cooperar eficazmente.
Garantia de equidade, políticas devem assegurar que novas infraestruturas beneficiem todas as áreas da cidade, evitando que zonas centrais ou economicamente privilegiadas concentrem os benefícios (Martens, 2017).
Finalmente, é importante referir que a mobilidade urbana em Luanda não é apenas um desafio técnico, mas um tema central de cidadania, desenvolvimento urbano e justiça social. A decisão de transferir a TCUL para o governo provincial apresenta potenciais riscos de ineficiência e limitações à inovação, que podem comprometer a sustentabilidade e qualidade do transporte público.
Em contrapartida, estratégias híbridas de gestão pública e privada, formalização de operadores informais, bilhete único digital, concessões e gestão de rotas baseadas na procura representam soluções mais alinhadas com experiências internacionais de sucesso.
Como resume Vuchic, “Transportation is the lifeblood of cities”. Em Luanda, a mobilidade urbana deve ser considerada como política pública estratégica, integrando eficiência, equidade e sustentabilidade ambiental, garantindo que os cidadãos tenham acesso a transporte de qualidade, seguro e acessível. A hora de agir é agora, não apenas para organizar o transporte, mas para consolidar a cidade como espaço de desenvolvimento, inclusão social e competitividade urbana.