Análise

Governar Sem Desculpas: O Balanço Incómodo De Archer Mangueira em 2025

Publicado

em

O discurso político-institucional assume, nas democracias contemporâneas e nos Estados em processo de consolidação institucional, uma dupla função essencial: por um lado, constitui um instrumento de prestação de contas públicas; por outro, funciona como mecanismo de legitimação da acção governativa, ao apresentar à sociedade os resultados alcançados, os desafios enfrentados e as orientações estratégicas para o futuro.

No contexto angolano, marcado por reformas graduais da Administração Pública, pela aposta na descentralização e por uma crescente exigência cidadã quanto à eficácia do Estado, a análise de discursos oficiais revela-se particularmente relevante. Estes discursos permitem avaliar o grau de alinhamento entre a narrativa governativa, a prática administrativa e os pressupostos universais da boa governação.

O presente artigo realiza uma análise de conteúdo aprofundada do discurso de cumprimento de fim de ano do Governador da Província do Namibe, Archer Mangueira, proferido em 2025, incidindo sobre a Parte I do balanço governativo. O objectivo central é identificar, interpretar e discutir os elementos discursivos que evidenciam a aplicação prática dos princípios da boa governação, tal como definidos pela literatura científica e por organismos internacionais de referência.

1. Enquadramento Conceptual: Boa Governação e Administração Pública Moderna

O conceito de boa governação ganhou centralidade no debate académico e institucional a partir da década de 1990, sobretudo no âmbito das políticas de desenvolvimento, da reforma do Estado e do fortalecimento institucional. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento define a boa governação como o exercício da autoridade política, económica e administrativa na gestão dos assuntos públicos, assente em princípios como participação, transparência, responsabilização, eficácia, equidade e Estado de Direito.

O Banco Mundial acrescenta que a governação de qualidade depende da capacidade do Estado para formular e implementar políticas públicas, assegurar o cumprimento das regras e manter a confiança dos cidadãos. Fukuyama reforça esta perspectiva ao sublinhar que a governação não se mede apenas por intenções ou planos, mas sobretudo pela capacidade efectiva de execução.

Por sua vez, Rhodes introduz o conceito de nova governação, caracterizado por relações horizontais, cooperação interinstitucional e envolvimento de múltiplos actores públicos e privados, superando o modelo burocrático tradicional.

Este referencial teórico sustenta a análise do discurso do Governador do Namibe, permitindo avaliar a sua coerência com os princípios contemporâneos da governação pública.

2. Metodologia: Análise de Conteúdo Qualitativa

A metodologia adoptada baseia-se na análise de conteúdo qualitativa, conforme sistematizada por Bardin, incidindo sobre o conteúdo manifesto e latente do discurso. Foram identificadas unidades temáticas directamente relacionadas com os pilares da boa governação, nomeadamente:

Liderança política e responsabilidade institucional;

Capacidade de resposta a crises Públicas;

Coordenação intersectorial e governação em rede;

Participação do cidadão e inclusão social;

Investimento em capital humano;

Eficácia na execução do investimento Público;

Visão estratégica de desenvolvimento económico territorial;

A análise privilegia a interpretação contextualizada do discurso, considerando o enquadramento político-administrativo da governação provincial em Angola.

3. Análise dos Pressupostos da Boa Governação no Discurso

3.1 Liderança Institucional e Responsabilidade Pública

Desde a abertura do discurso, observa-se uma forte ênfase no sentido de responsabilidade institucional e no respeito pelo cargo público. A referência explícita à reflexão, ao balanço e à renovação do compromisso colectivo traduz uma liderança consciente do seu papel enquanto garante do interesse público.

Segundo Moore, a liderança pública eficaz é aquela que cria valor público, conciliando autoridade política, expectativas sociais e resultados concretos. Neste sentido, o discurso posiciona o Governador não apenas como gestor administrativo, mas como líder político responsável perante os cidadãos do Namibe.

3.2 Capacidade de Resposta a Crises e Governação de Emergência

Um dos elementos mais relevantes do discurso é o balanço da resposta ao surto de cólera, apresentado como um marco estruturante de 2025. A descrição detalhada da actuação multissectorial evidencia uma governação orientada para resultados e baseada na coordenação interinstitucional.

A activação simultânea dos sectores da saúde, das águas, da energia, da protecção civil e da administração do território reflecte o modelo de governação integrada defendido pelo Banco Mundial, segundo o qual crises complexas exigem respostas sistémicas e não sectoriais.

A tomada de decisões sensíveis, como o reassentamento de famílias no município do Tômbwa, reforça a ideia de liderança responsável, disposta a assumir custos políticos em nome da protecção da vida humana, princípio fundamental da ética pública.

3.3 Governação em Rede e Coordenação Intersectorial

O discurso evidencia uma prática clara de governação em rede, conceito desenvolvido por Rhodes, ao destacar o envolvimento de parceiros sociais e das comunidades na resposta à crise sanitária.

Este modelo rompe com a lógica vertical da administração tradicional e aproxima-se de uma governação colaborativa, na qual o Estado actua como articulador de recursos, competências e actores. Tal abordagem aumenta a eficácia das políticas públicas e reforça a confiança institucional, elemento central para a legitimidade governativa.

3.4 Investimento na Saúde e Qualidade dos Serviços Públicos

A inauguração da primeira unidade de hemodiálise e de uma moderna unidade de cuidados intensivos demonstra um compromisso com a qualidade dos serviços públicos essenciais. Segundo Fukuyama, a capacidade do Estado mede-se, em grande parte, pela sua aptidão para fornecer serviços públicos de forma equitativa e eficiente.

O investimento em infra-estruturas de saúde especializadas reduz desigualdades, diminui a dependência de evacuações médicas e fortalece o sistema provincial de saúde, contribuindo para a justiça social e para o bem-estar colectivo.

3.5 Participação Cívica, Inclusão e Capital Social

O destaque dado aos Dias de Cidadania, ao diálogo permanente com a sociedade civil e à realização da Gala dos 50 Anos evidencia uma governação próxima dos cidadãos. Governar, como sublinha o discurso, não é apenas decidir, mas também ouvir, reconhecer e incluir.

Putnam argumenta que sociedades com elevado capital social tendem a possuir instituições mais eficazes. O Fórum “Mentores do Futuro” surge, neste contexto, como um exemplo concreto de participação cidadã estruturada, promovendo o diálogo intergeracional e reforçando a coesão social.

3.6 Educação, Equidade e Desenvolvimento Humano

A referência ao Programa Okulinonga enquadra-se directamente no princípio da equidade e do desenvolvimento humano. Sen defende que o desenvolvimento deve ser entendido como expansão das liberdades e capacidades das pessoas, sendo a educação um instrumento central nesse processo.

Ao combater o abandono escolar e integrar crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade no sistema educativo, a governação provincial investe no futuro e reforça a sustentabilidade social das políticas públicas.

3.7 Desenvolvimento Económico Territorial e Sustentabilidade

No plano económico, o discurso revela uma visão estratégica orientada para a transformação estrutural da economia provincial. A aposta no Pólo de Desenvolvimento das Rochas Ornamentais e na sua articulação com o Terminal Mineiro do Sacomar traduz uma estratégia de integração em cadeias de valor, conforme defendido por Porter.

Esta abordagem procura superar o modelo primário-exportador, promovendo a industrialização local, a criação de emprego qualificado e uma maior retenção de riqueza no território, elementos centrais de uma governação orientada para o desenvolvimento sustentável.

3.8 Execução do Investimento Público e Descentralização Funcional

O destaque dado ao Programa de Investimento Público Local e aos elevados níveis de execução em 2025 reforça a centralidade da capacidade executiva. Hood sublinha que a gestão pública moderna deve ser orientada para resultados, eficiência e responsabilização.

A distinção entre projectos de âmbito central e projectos de responsabilidade local demonstra maturidade institucional e reforça o argumento de que a previsibilidade financeira é condição essencial para o sucesso da governação descentralizada.

Finalmente, é pertinente referir que numa análise aprofundada do discurso do Governador Archer Mangueira revela uma narrativa politicamente consistente e tecnicamente alinhada com os pressupostos da boa governação. O discurso articula liderança responsável, capacidade de resposta a crises, governação participativa, investimento em capital humano e visão estratégica de desenvolvimento territorial.

Mais do que um exercício retórico, o discurso assume-se como um acto de accountability, reforçando a legitimidade institucional e a confiança dos cidadãos no poder público. Contudo, conforme alerta Fukuyama, a consolidação da boa governação exige que o discurso seja continuamente acompanhado por mecanismos efectivos de monitoria, avaliação e transparência.

Neste sentido, o caso da Província do Namibe constitui um exemplo relevante de governação provincial orientada para resultados, oferecendo contributos importantes para o debate académico e político sobre governação local e desenvolvimento em Angola.

Deixar uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Exit mobile version