Análise

Finanças públicas em Angola: entre mérito individual e sistema ineficiente

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A arquitectura do Governo Financeiro de um Estado corresponde ao conjunto de instituições, normas, processos e relações de coordenação responsáveis pela arrecadação de receitas públicas, alocação de recursos, execução da despesa, gestão de activos e passivos do Estado e fiscalização da legalidade e da eficiência financeira. Trata-se, como define Allen Schick, da “infra-estrutura institucional que transforma decisões políticas em resultados financeiros concretos”.

Esta arquitectura não se resume à existência de um Ministério das Finanças. Inclui o Tesouro, a administração tributária, o banco central, os órgãos de controlo interno e externo, os mercados financeiros públicos e entidades estratégicas como fundos soberanos e bolsas de valores. A sua qualidade mede-se não pela quantidade de instituições, mas pela coerência, previsibilidade, transparência e capacidade de produzir resultados sustentáveis.

Segundo Richard Musgrave, a arquitectura financeira do Estado deve permitir cumprir três funções essenciais: alocação eficiente dos recursos, redistribuição da riqueza e estabilização macroeconómica. Quando estas funções falham, o problema raramente é jurídico; é quase sempre institucional e operativo.

1. Angola no contexto comparado da arquitectura financeira do Estado

Formalmente, Angola possui uma arquitectura financeira completa e alinhada com modelos internacionais: Ministério das Finanças como órgão central, Administração Geral Tributária para arrecadação fiscal, Banco Nacional de Angola como autoridade monetária, Tribunal de Contas como órgão de controlo externo, Assembleia Nacional com poder orçamental, além de instituições estratégicas como o Fundo Soberano de Angola e a BODIVA.

O desafio angolano, porém, não reside na arquitectura formal, mas na sua funcionalidade prática. Como observa Douglass North, “as instituições podem existir sem produzir desempenho se não houver incentivos correctos e enforcement efectivo”. Em Angola, persistem fragilidades como centralização excessiva, fraca autonomia técnica dos órgãos de controlo, dependência petrolífera e descontinuidade entre planeamento e execução.

2. Comparação com outros países: quando a arquitectura produz resultados

A comparação internacional demonstra que bons resultados financeiros decorrem da maturidade da arquitectura institucional, e não de factores conjunturais.

Na Noruega, o fundo soberano é apenas a face visível de uma arquitectura altamente disciplinada, onde regras fiscais rígidas, transparência radical e separação entre política e gestão impedem o uso discricionário dos recursos. O mérito é estrutural, não pessoal.

Em Portugal, após a crise financeira, a arquitectura do Governo Financeiro foi reforçada com instituições independentes de escrutínio orçamental, planeamento plurianual vinculativo e um Tribunal de Contas com impacto real. O resultado foi previsibilidade financeira e recuperação da credibilidade externa.

O Brasil, apesar da complexidade federativa, construiu uma arquitectura de controlo robusta, com tribunais de contas, controladorias e forte fiscalização parlamentar. Como refere Guillermo O’Donnell, este controlo horizontal reduz a captura política das finanças públicas.

Já a África do Sul destaca-se pela profissionalização do Tesouro Nacional, onde a técnica limita a política. O Banco Mundial considera este modelo um exemplo africano de como a arquitectura financeira pode funcionar como barreira institucional contra decisões populistas.

Estes exemplos revelam uma lição central: quando a arquitectura funciona, os bons resultados tornam-se previsíveis; quando não funciona, os bons resultados tornam-se excepcionais.

3. O desempenho histórico do Fundo Soberano de Angola: mérito institucional ou triunfo da liderança executiva?

O debate sobre a qualidade do Governo Financeiro do Estado em Angola ganha novos contornos quando surgem resultados concretos, mensuráveis e positivos. Um desses casos foi recentemente destacado pelo jornal O Telegrama, ao sublinhar o desempenho do Fundo Soberano de Angola (FSDEA) sob a liderança de Armando Manuel, actual presidente do Conselho de Administração.

Segundo O Telegrama, Armando Manuel, antigo ministro das Finanças, com passagem pelo Banco Mundial, onde exerceu funções de director executivo e membro do Conselho de Administração em representação de Angola, Nigéria e África do Sul, bem como pelo Fundo Monetário Internacional, onde actuou como conselheiro em Assistência Técnica, regressou à liderança do FSDEA em Dezembro de 2023. Em pouco mais de dois anos, de acordo com as demonstrações financeiras do terceiro trimestre de 2025, o Fundo passou a reportar o maior resultado financeiro da sua história: 335,86 milhões de dólares norte-americanos.

Este dado não é apenas contabilístico. É político, institucional e estratégico. E coloca uma questão incontornável: a quem deve ser atribuído o mérito desta conquista? À coordenação do Governo Financeiro do Estado ou, sobretudo, à actuação do Executivo do Fundo Soberano?

4. O FSDEA no contexto do Governo Financeiro do Estado

O Fundo Soberano de Angola integra formalmente o sistema do Governo Financeiro do Estado, estando sujeito à orientação macroeconómica do Executivo e à tutela do Ministério das Finanças. Em teoria, os seus resultados deveriam reflectir a coerência e a eficácia do conjunto da política financeira pública. Como defende Richard Musgrave, “os instrumentos financeiros do Estado devem actuar de forma integrada para cumprir os objectivos de estabilização, crescimento e equidade”.

Contudo, a realidade angolana revela uma tensão permanente entre arquitectura institucional e desempenho efectivo. Embora o país disponha de instituições formalmente bem desenhadas, os resultados globais das finanças públicas continuam marcados por fragilidades estruturais, desde a execução orçamental irregular até à fraca articulação entre planeamento e orçamento.

Neste contexto, o sucesso do FSDEA surge menos como consequência natural do sistema e mais como um ponto fora da curva.

5. Liderança executiva como factor decisivo

A literatura sobre governação financeira é clara ao afirmar que instituições não produzem resultados por si mesmas. Douglass North lembra que “as instituições estabelecem as regras do jogo, mas são os actores que determinam o desempenho”. O percurso técnico e internacional de Armando Manuel sugere precisamente esse diferencial: conhecimento profundo dos mercados financeiros, familiaridade com padrões internacionais de gestão de activos soberanos e compreensão das exigências de transparência e prudência.

O resultado histórico agora divulgado por O Telegrama aponta para uma mudança de postura na gestão do FSDEA, mais focada na preservação de valor, na rentabilidade sustentável e na redução da exposição a decisões excessivamente políticas. Neste sentido, o mérito directo recai, de forma inequívoca, sobre o Executivo do Fundo Soberano.

6. Um sinal complementar vindo do mercado de capitais

No mesmo contexto de resultados positivos em instituições-chave do sistema financeiro angolano, a Bolsa de Dívida e Valores de Angola (BODIVA) anunciou, segundo o Jornal de Angola, um lucro líquido de 892 milhões de kwanzas no primeiro semestre de 2025, com um volume de negócios de 3.057 milhões de kwanzas, representando um crescimento de 39,3% em relação ao período homólogo de 2024, conforme noticiado pelo jornalista Isaque Lourenço. Embora com natureza institucional distinta do FSDEA, este desempenho da BODIVA reforça a percepção de que existem bolsas de eficiência e maturação técnica em segmentos específicos do sistema financeiro nacional, ainda que tais resultados não sejam, por si só, prova de uma reforma sistémica abrangente do Governo Financeiro do Estado.

7. Coordenação financeira do Estado: mérito indirecto ou ausência estratégica?

A tentação política é atribuir este sucesso à melhoria geral da coordenação financeira do Estado. Contudo, essa leitura exige cautela. Se o Governo Financeiro estivesse, no seu conjunto, a funcionar de forma consistente, seria expectável observar desempenhos semelhantes noutras entidades públicas estratégicas.

Como alerta Allen Schick, “resultados positivos isolados não substituem reformas sistémicas”. O FSDEA parece beneficiar mais de uma bolha de boa governação interna do que de um ambiente financeiro público plenamente reformado. Isto levanta uma questão sensível: estará o Fundo Soberano a funcionar apesar do sistema, e não por causa dele?

8. Comparação internacional e risco da personalização

Experiências internacionais demonstram que fundos soberanos bem-sucedidos, como o da Noruega, assentam menos em figuras individuais e mais em regras claras, instituições fortes e separação rigorosa entre política e gestão. Quando o sucesso é excessivamente personalizado, o risco é evidente: a sustentabilidade dos resultados fica dependente de pessoas, e não de sistemas.

Angola tem um histórico preocupante de personalizar sucessos e diluir responsabilidades. Celebrar o desempenho do FSDEA sem questionar como institucionalizar estas boas práticas no conjunto do Governo Financeiro do Estado seria um erro estratégico.

9. Conclusão: mérito claro, lição ainda por aprender

O desempenho histórico do Fundo Soberano de Angola, amplamente divulgado por O Telegrama, assim como os resultados positivos recentemente anunciados pela BODIVA, devem ser reconhecidos com clareza intelectual. Há mérito inequívoco na liderança executiva das instituições que apresentam bons resultados, há mérito indirecto no enquadramento macroeconómico e há, sobretudo, uma lição dura para o Estado angolano.

O verdadeiro desafio não é saber quem merece os aplausos, mas como transformar estes casos de sucesso em padrões institucionais replicáveis. Enquanto o bom desempenho financeiro continuar a ser excepção e não regra, o Governo Financeiro do Estado permanecerá estruturalmente frágil.

A pergunta, portanto, mantém-se actual e incómoda: vamos continuar a depender de bons gestores ocasionais ou teremos coragem de construir um sistema que produza bons resultados de forma consistente?

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