Análise
Especulação imobiliária: o novo nome da corrupção urbana em Angola
A crise do arrendamento urbano em Angola tornou-se um dos fenómenos sociais mais alarmantes das últimas décadas, revelando não apenas o colapso da política habitacional, mas também a fragilidade do Estado na protecção dos direitos básicos dos cidadãos. O recente caso dos moradores do Zango, obrigados a pagar até um ano de renda antecipada, é apenas um exemplo entre milhares que vivem a mesma realidade em Luanda, Benguela, Huíla e outras províncias do país.
A habitação, consagrada no artigo 85.º da Constituição da República de Angola como direito fundamental, deixou de ser um espaço de segurança e dignidade para se tornar instrumento de exploração económica. A exigência ilegal de pagamentos antecipados superiores ao limite previsto pela Lei n.º 26/15, de 23 de Outubro (Lei do Arrendamento Urbano) que permite apenas três meses de caução incluindo a primeira renda, representa não só um atentado contra a lei, mas também uma afronta à ética social e ao princípio de justiça.
1. O Colapso das Políticas de Arrendamento e o Silêncio Institucional
Desde o período pós-guerra civil, Angola vive um crescimento urbano acelerado desprovido de planeamento. O aumento populacional nas grandes cidades, aliado à escassez de habitação pública e ao fraco poder de compra das famílias, criou o terreno fértil para práticas abusivas no mercado de arrendamento.
Muitos senhorios, aproveitando-se da ausência de fiscalização, exigem pagamentos exorbitantes chegando a solicitar até um ano completo de renda adiantada. A isto soma-se a inexistência de mecanismos eficazes de mediação de conflitos entre senhorios e inquilinos.
Segundo o jurista português Diogo Freitas do Amaral (2001), “as leis não mudam o mundo, mas mudam o comportamento dos homens quando há Estado que as faça cumprir”. Em Angola, o que falta não é a lei, mas o Estado que garanta a sua execução.
A Lei do Arrendamento Urbano é clara: o contrato deve ser celebrado por escrito e registado, e o senhorio não pode exigir mais de dois meses de renda como caução. No entanto, a prática corrente mostra o contrário: contratos verbais, ausência de recibos e exigências ilegais que submetem os inquilinos à insegurança jurídica total.
2. A Especulação Imobiliária: O Novo Colonialismo Urbano
A especulação imobiliária transformou-se num dos maiores flagelos do desenvolvimento urbano angolano. O economista e geógrafo David Harvey (2012) descreve este fenómeno como “acumulação por desapropriação”, um processo em que os mais poderosos apropriam-se dos recursos urbanos em detrimento das classes vulneráveis.
Em Luanda, zonas outrora acessíveis, como Benfica, Camama e Viana, tornaram-se reféns de investidores que compram terrenos ou casas, inflacionam os preços e depois arrendam a valores que superam, em muitos casos, o rendimento médio nacional.
Nos últimos cinco anos, o preço médio do arrendamento em algumas zonas urbanas da capital ultrapassou os 350.000 kwanzas mensais, num país onde o salário mínimo ronda os 70.000 kwanzas. Este desfasamento entre rendimento e custo habitacional é um indicador claro de injustiça social estrutural.
Como advertia o urbanista francês Henri Lefebvre (1970), “a cidade é o espaço onde o capital se reproduz e o cidadão é substituído pelo consumidor”. Em Angola, a habitação foi transformada num negócio especulativo e o direito à cidade foi confiscado por elites económicas que tratam o lar como mercadoria e não como direito humano.
3. Experiências Internacionais: Quando o Estado Actua, o Abuso Regride
Em Portugal, o Programa Porta 65 Jovem e o Balcão Nacional do Arrendamento (BNA) oferecem incentivos fiscais, apoio financeiro e mediação judicial para contratos de arrendamento. Estes mecanismos permitiram reduzir conflitos e travar a especulação, sobretudo nas grandes cidades.
Em Espanha, a cidade de Barcelona criou em 2020 uma Lei de Contenção de Rendas, limitando aumentos abusivos e obrigando os proprietários a declarar contratos em registos públicos.
Na Alemanha, o modelo de Berlim é exemplar. Em 2015 foi aprovado o Mietpreisbremse (travão de rendas), que impede que o valor de novos contratos ultrapasse 10% do valor médio da zona. Em 2021, um fundo habitacional público foi criado para adquirir imóveis de grandes investidores e arrendá-los a preços controlados.
No Brasil, o Programa Minha Casa, Minha Vida e mais recentemente o Casa Verde e Amarela articulam políticas de crédito habitacional com arrendamento social, garantindo acesso à moradia para famílias de baixa renda.
Estes exemplos demonstram que o equilíbrio entre mercado e dignidade humana só é possível quando há presença activa do Estado e mecanismos de regulação e controlo real.
4. O Papel do INFHA: Da Burocracia à Defesa da Dignidade Habitacional
Em Angola, o Instituto Nacional de Fomento Habitacional (INFHA) precisa de deixar de ser uma instituição meramente burocrática e passar a desempenhar funções de fiscalização, regulação e mediação.
O INFHA deve ser o órgão central da política habitacional, capaz de:
1. Criar um Registo Nacional de Contratos de Arrendamento de carácter obrigatório que permita monitorar os preços e prevenir abusos.
2. Implementar um Mecanismo Nacional de Denúncia e Fiscalização da Exploração Habitacional em convénio com a Polícia Nacional e os órgãos judiciais.
3. Estabelecer balcões provinciais de apoio jurídico gratuito, orientando inquilinos e senhorios sobre os direitos e deveres previstos na lei.
4. Criar parcerias com administrações municipais para o controlo da especulação imobiliária e da ocupação desordenada de terrenos.
Além da acção repressiva, é fundamental que o INFHA desenvolva programas de educação cívica e jurídica, alertando a população sobre o limite legal dos pagamentos antecipados e os riscos dos contratos informais.
Como afirmou Amartya Sen (1999), “o desenvolvimento é a expansão das liberdades reais das pessoas”. Logo, sem liberdade de acesso à habitação digna, não há desenvolvimento humano nem social.
5. O Mercado Imobiliário e a Nova Geografia da Exclusão
O urbanismo angolano actual está a criar uma geografia da exclusão onde o centro urbano é reservado à elite e a periferia ao cidadão comum. Tal lógica é contrária ao princípio da justiça social defendido por John Rawls (1971), segundo o qual a desigualdade só é aceitável se beneficiar os menos favorecidos, o que evidentemente não ocorre em Angola.
O sociólogo Zygmunt Bauman (2000) chamaria este fenómeno de “modernidade líquida”, onde tudo é descartável, inclusive o ser humano. Em Luanda, os inquilinos tornaram-se descartáveis. Podem ser despejados sem pré-aviso, substituídos por quem paga mais, ignorados pelo Estado e punidos pela pobreza.
A isto soma-se a especulação de terrenos urbanos, muitas vezes fomentada por funcionários públicos e empresários ligados a elites políticas, o que agrava o conflito ético. O próprio Mercado Imobiliário de Talatona e Benfica tornou-se símbolo de desigualdade urbana, com condomínios de luxo a poucos metros de bairros sem saneamento básico.
6. Propostas de Reforma Estrutural
Para inverter este quadro, são necessárias medidas concretas:
1. Revisão e actualização da Lei do Arrendamento Urbano (Lei n.º 26/15) com inclusão de penalizações severas para exigência de pagamentos ilegais e especulação de preços.
2. Criação de um Observatório Nacional de Habitação e Arrendamento sob gestão do INFHA, com dados estatísticos e relatórios públicos sobre preços, oferta e procura.
3. Implementação de políticas de habitação social urbana destinadas a jovens, funcionários públicos e famílias vulneráveis através de arrendamento subsidiado.
4. Incentivos fiscais e jurídicos para contratos formais, de modo a combater a informalidade e aumentar a arrecadação do Estado.
5. Regulamentação dos preços por zonas urbanas com base em estudos técnicos e em parceria com universidades e câmaras municipais.
Com estas medidas, Angola poderá aproximar-se de modelos internacionais bem-sucedidos e transformar o INFHA numa verdadeira instituição de justiça habitacional.
7. Conclusão: O Direito à Habitação Como Pilar da Justiça Social
O problema do arrendamento em Angola não é apenas económico. É moral e político. O Estado não pode continuar a tolerar práticas que violam a dignidade humana sob o pretexto da liberdade de mercado.
Como recorda David Harvey, “a luta pelo direito à cidade é, antes de tudo, uma luta pela dignidade e pelo direito à vida”. Garantir o acesso à habitação digna é garantir o futuro das famílias angolanas.
Enquanto o Instituto Nacional de Fomento Habitacional não assumir a responsabilidade plena pela fiscalização e protecção do cidadão arrendatário, e enquanto a especulação imobiliária continuar impune, o sonho da casa continuará a ser o mais caro e o mais distante dos direitos.