Análise
Empresas públicas: património colectivo capturado pela má gestão em Angola
A prestação de contas (accountability) das empresas estatais constitui, em qualquer parte do mundo, um dos principais indicadores de boa governança. Mais do que uma obrigação administrativa, trata-se de uma exigência ética, económica e política que define a qualidade da democracia, a confiança social e a eficiência na utilização dos recursos colectivos. Como lembra Joseph Stiglitz (2002), “a transparência não é apenas um ideal democrático, mas um elemento fundamental para a eficiência económica e para a confiança social”.
1. Modelos Globais: Lições a Aprender
Em diversas regiões do mundo encontramos práticas que demonstram que a prestação de contas nas empresas estatais é possível, eficaz e geradora de resultados.
Singapura é um dos casos mais emblemáticos. Através da holding estatal Temasek, as chamadas GLCs (Government-Linked Companies) são geridas com padrões internacionais de governança corporativa, exigindo relatórios financeiros claros, auditorias independentes e responsabilização dos gestores. Segundo o Banco Mundial (2014), a Temasek transformou empresas públicas em actores competitivos globais, provando que o Estado pode ser um accionista disciplinador e eficiente.
Na Noruega, a exploração petrolífera é acompanhada por um rigoroso sistema de reporte e separação entre política e gestão empresarial. O FMI (2019) realçou que a Noruega conseguiu criar previsibilidade e confiança ao blindar as empresas estatais contra a captura política, transformando-as em pilares da economia nacional e no maior fundo soberano do mundo.
A Suécia, por sua vez, destaca-se pela clareza e consistência na divulgação das contas públicas. Como observa Bo Rothstein (2011), a transparência não é apenas um mecanismo de controlo, mas um valor cultural que perpassa toda a administração pública. Relatórios anuais acessíveis ao público, auditorias parlamentares e vigilância da imprensa tornam a opacidade institucionalmente inaceitável.
Esses exemplos são reforçados por iniciativas internacionais. A EITI (Extractive Industries Transparency Initiative) exige relatórios públicos sobre receitas e contratos no setor extractivo, garantindo mais clareza nos fluxos financeiros. A OCDE (2015), por sua vez, afirma que os seus Princípios de Governança das Empresas Estatais são “um manual indispensável para que o Estado, enquanto accionista, actue com responsabilidade e promova a sustentabilidade das empresas públicas”.
Não é coincidência que países que lideram o Índice de Percepção da Corrupção, como Dinamarca, Finlândia, Nova Zelândia, Singapura e Noruega, sejam também referências em prestação de contas das suas empresas públicas.
2. O Caso Angolano: Avanços no Papel, Fragilidades na Prática
Em Angola, o Relatório Agregado do Sector Empresarial Público 2024 revela um universo de 87 empresas estatais, das quais 81 activas e 6 paralisadas. Trata-se de um sector vasto e estratégico, que inclui gigantes como a Sonangol, TAAG, BPC e UNITEL, mas também pequenas empresas de serviços locais.
3. Os números de 2024 mostram avanços quantitativos:
Activo Agregado: 39.579,2 mil milhões Kz (2024), um crescimento de 9% em relação a 2023.
Passivo Agregado: 25.025,8 mil milhões Kz (+8%).
Capital Próprio: 14.553,4 mil milhões Kz (+12%).
Volume de Negócios: 12.829,5 mil milhões Kz (+15,9%).
Resultado Líquido: 788,4 mil milhões Kz, uma queda de 13% face a 2023.
ROE (Retorno sobre Capitais Próprios): 5,4% em 2024, contra 6,9% em 2023.
ROA (Retorno sobre Activos): 2,0% em 2024, abaixo dos 2,5% do ano anterior.
A queda do ROE e do ROA revela baixa eficiência na gestão dos recursos, apesar do aumento no volume de negócios.
Em termos laborais, o sector emprega 55.743 trabalhadores, distribuídos sobretudo pelos sectores da construção, indústrias transformadoras, agricultura e transportes. Contudo, a produtividade média é baixa e não acompanha o volume dos subsídios recebidos.
4. No relacionamento com o Estado:
1. Subsídios Operacionais: cerca de 45 mil milhões Kz/ano, canalizados sobretudo para empresas de comunicação social (TPA, RNA, ANGOP, Tv Zimbo), ferroviárias (CFB, CFM, CFL) e gráficas.
2. Dividendos ao Estado: em queda contínua, de 86,3 mil milhões Kz (2022) para apenas 51,9 mil milhões Kz (2024).
3. Capitalizações: redução drástica, de 422,1 mil milhões Kz em 2022 para apenas 147,3 mil milhões Kz em 2024.
Na prestação de contas, embora mais relatórios tenham sido entregues em 2024, persistem lacunas: relatórios de auditoria externa em falta, contas não aprovadas ou aprovadas com reservas, atrasos recorrentes e fraca divulgação pública. Empresas de peso como a Sonangol, BPC e TAAG continuam dominantes, mas enfrentam sérios desafios de endividamento, gestão e credibilidade.
5. África Austral: Avanços e Contradições
Na África Austral, o quadro é contrastante.
A África do Sul alcança 83/100 pontos em transparência orçamental no Open Budget Survey 2023, um dos melhores desempenhos mundiais. O International Budget Partnership reconhece que o país “possui um dos sistemas de reporte orçamental mais transparentes do hemisfério sul”. Porém, crises de governança em estatais como a ESKOM e a South African Airways confirmam o alerta de Steven Friedman (2019) sobre a “captura política das estatais”.
A Namíbia tem avançado com auditorias e relatórios independentes. Estudos da Ernst & Young (2020) analisaram 70 empresas públicas e parastatais, incluindo remunerações executivas, revelando práticas inconsistentes, mas também maior vigilância.
Já Botswana enfrenta graves problemas de conformidade. Segundo o Business Weekly (2024), várias estatais operam com gestões interinas prolongadas, sem liderança definitiva. Para John Hatchard (2010), “a ausência de estabilidade e responsabilização clara na liderança estatal abre terreno fértil para a opacidade e para a captura de recursos públicos”.
Nos restantes países da SADC, como Angola, Moçambique e Zâmbia, a prestação de contas evolui mais no plano normativo do que na prática. Tribunais de contas e agências fiscalizadoras existem, mas a execução é fraca, os relatórios chegam com atrasos e muitas contas são aprovadas com reservas.
6. Os Quatro Pilares da Prestação de Contas
A comparação entre casos internacionais e regionais mostra quatro pilares fundamentais que Angola e os seus vizinhos devem consolidar:
1. Legislação clara e aplicada – Como defendem Shleifer & Vishny (1994), leis sem mecanismos de execução e sanções reais tornam-se inúteis.
2. Auditorias independentes – Segundo a Transparency International (2022), auditorias externas podem reduzir em até 30% os riscos de corrupção.
3. Instituições fortes e autónomas – Para Douglass North (1990), o desempenho económico depende directamente da solidez das instituições.
4. Participação cidadã e vigilância social – Como lembra Amartya Sen (1999), a democracia só cumpre o seu papel quando os cidadãos têm voz activa na fiscalização dos recursos públicos.
7. Conclusão: Angola Entre o Discurso e a Prática
Os dados de 2024 mostram que as empresas públicas angolanas são gigantes em activos e volume de negócios, mas frágeis em rentabilidade e prestação de contas. A dependência de subsídios do Estado, a queda nos dividendos e a baixa eficiência revelam um sector que, em vez de motor de desenvolvimento, muitas vezes se torna um fardo para o erário.
Como adverte Bresser-Pereira (2006), “a reforma do Estado não pode ser apenas normativa, mas cultural”. Em Angola, mais do que produzir relatórios, é necessário mudar a cultura da opacidade, fortalecendo auditorias independentes, reforçando instituições e garantindo que a sociedade tenha acesso às contas de empresas que são, em última análise, património colectivo.
Enquanto Singapura transforma estatais em motores globais de competitividade, Angola continua a lutar para que Sonangol, TAAG ou BPC não sejam sinónimos de ineficiência e dependência. Como lembra Joseph Nye (2004), “o poder de um Estado mede-se também pela confiança que inspira nos seus cidadãos”.
A questão central mantém-se: as empresas estatais existem para servir o povo ou para sobreviver às custas do povo?