Análise

Empresas públicas em Angola: transparência informatizada ou corrupção digitalizada?

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O controlo das finanças públicas constitui um dos pilares essenciais para a credibilidade, estabilidade e desenvolvimento dos Estados modernos. Mais do que uma mera exigência administrativa, é uma condição para a sustentabilidade democrática e para a confiança dos cidadãos nos seus governantes. Como sublinha Musgrave (1989), a política fiscal não se limita à arrecadação e à execução da despesa; deve estar ancorada em mecanismos sólidos de controlo que assegurem a eficiência, a equidade e a transparência na utilização dos recursos públicos.

No caso das empresas públicas e de capital estatal, essa questão adquire maior relevância, já que tais instituições transitam entre a lógica de mercado e a obrigação de servir o interesse colectivo.

Segundo Caiden & Wildavsky (1980), “o orçamento é a tradução em números das prioridades políticas de uma nação”. A execução orçamental, quando não acompanhada de mecanismos de auditoria eficazes, fiscalização independente e sistemas informáticos integrados, abre brechas para fenómenos como má gestão, clientelismo e corrupção. É nesse contexto que o controlo financeiro deve ser visto não como um entrave burocrático, mas como um instrumento de boa governação e de justiça social.

1. O Quadro Global do Controlo das Finanças Públicas

A nível internacional, o controlo das finanças públicas organiza-se em três dimensões principais: controlo interno, controlo externo e controlo social.

O controlo interno ocorre no seio das próprias instituições estatais, com auditorias internas e inspeções regulares.

O controlo externo é exercido por entidades independentes, como os Tribunais de Contas, responsáveis por verificar a legalidade, a eficácia e a economicidade da utilização dos fundos públicos.

O controlo social, por sua vez, resulta da acção do Parlamento, da sociedade civil e da comunicação social, reforçando a pressão para a prestação de contas.

Em países como Suécia e Noruega, o controlo assenta sobretudo na transparência: relatórios financeiros públicos e acessíveis a qualquer cidadão, assegurando que cada contribuinte saiba onde e como os recursos são aplicados. Já a União Europeia uniformiza práticas através do Sistema Europeu de Contas (SEC), promovendo padronização e comparabilidade entre Estados (European Commission, 2016).

Na América Latina, o Brasil destaca-se com a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.º 101/2000), que define limites rigorosos à despesa pública, proibindo gestores de comprometerem receitas futuras sem respaldo legal. Este modelo, como argumenta Giacomoni (2017), representa um marco no controlo fiscal, servindo de referência para outros países emergentes.

2. Empresas Públicas e de Capital Estatal: Entre o Mercado e a Responsabilidade Social

As empresas públicas são responsáveis por sectores estratégicos como energia, transportes, telecomunicações e recursos naturais. Stiglitz (2002) alerta que estas entidades enfrentam dilemas complexos: “devem competir em mercados altamente exigentes, mas sem perder de vista a sua função social, frequentemente em contradição com a lógica do lucro”.

A OCDE (2015), no seu Guidelines on Corporate Governance of State-Owned Enterprises, recomenda que os governos separem claramente o papel de regulador do papel de accionista, além de promoverem conselhos de administração independentes e profissionalizados. Estas medidas visam reduzir riscos de captura política, aumentar a eficiência operacional e reforçar a confiança dos investidores e da sociedade.

Quando bem geridas, empresas públicas podem ser motores de desenvolvimento, como a Temasek Holdings, em Singapura, que se tornou referência mundial em corporate governance. Porém, quando mal controladas, transformam-se em fontes de corrupção e endividamento público, como mostra o caso da Eskom, na África do Sul.

3. Sistemas Informáticos: A Revolução no Controlo Financeiro

Com o avanço tecnológico, os sistemas informáticos integrados tornaram-se ferramentas indispensáveis no controlo das finanças públicas e empresariais.

O SIAFI (Sistema Integrado de Administração Financeira), criado no Brasil em 1987, é considerado um dos mais robustos da América Latina, permitindo o acompanhamento em tempo real da execução orçamental e reduzindo o espaço para manipulações. Em países africanos como Quénia, Gana e Tanzânia, o IFMIS (Integrated Financial Management Information System) desempenha função semelhante, modernizando o processo de arrecadação e despesa pública.

Diamond & Khemani (2005) destacam que “os IFMIS aumentam a disciplina fiscal, melhoram a qualidade da informação financeira e permitem uma maior responsabilização dos gestores públicos”. Contudo, a eficácia destes sistemas depende não apenas da tecnologia, mas também da capacidade institucional e da vontade política em utilizá-los plenamente.

4. Sistemas Informáticos para a Contratação Pública, Empresarial e de Pessoal

O processo de contratação é, tradicionalmente, o ponto mais vulnerável à corrupção. A ausência de mecanismos digitais abre espaço para favoritismos, sobrepreços, contratos fictícios e também para a contratação de pessoal sem critérios claros e transparentes.

A contratação de pessoal sem transparência, muitas vezes marcada por nepotismo, compadrio ou clientelismo político, compromete a eficiência das instituições e mina a confiança pública. Plataformas digitais de e-Recruitment já começam a ser utilizadas em alguns países para garantir processos de selecção mais justos, baseados em mérito e competências.

Um exemplo paradigmático é o KONEPS (Korea On-line E-Procurement System), da Coreia do Sul, considerado pelo Banco Mundial (2013) como o mais eficiente do mundo, capaz de reduzir custos, aumentar a competitividade e garantir transparência em todas as fases da contratação. Na União Europeia, o TED (Tenders Electronic Daily) centraliza e divulga todos os concursos públicos, permitindo um mercado aberto e competitivo. Em África, países como Ruanda e Quénia adoptaram plataformas digitais de compras públicas integradas nos IFMIS, com resultados positivos no combate à corrupção e na redução da burocracia.

Para Angola, a inserção de sistemas informáticos de contratação pública e de pessoal, devidamente integrados com a execução orçamental e com a gestão financeira das empresas estatais, seria um passo fundamental para transformar tanto o processo de compras como o de recrutamento em verdadeiros instrumentos de eficiência, rigor e responsabilização.

5. Exemplos de Empresas Públicas pelo Mundo

Noruega: a antiga Statoil (actual Equinor) é exemplo de empresa estatal que alia rentabilidade com transparência, adoptando relatórios anuais independentes e rigorosos.

Singapura: a Temasek Holdings tornou-se referência em governação corporativa e transparência financeira.

Brasil: a Petrobras, após escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava Jato, implementou programas robustos de compliance e auditorias digitais.

África do Sul: a Eskom exemplifica os riscos de má gestão, endividamento descontrolado e interferência política em empresas públicas.

China: as State-Owned Enterprises (SOEs) são supervisionadas pelo SASAC, que combina controlo estatal com práticas modernas de auditoria e governance.

6. O Caso Africano e os Desafios de Angola

Na África Austral, países como Botswana e Namíbia têm feito progressos no fortalecimento da fiscalização e na adopção de sistemas digitais, embora persistam limitações institucionais. Angola, por sua vez, enfrenta um desafio mais complexo. A excessiva centralização da arrecadação fiscal, a frágil cultura de prestação de contas e os recorrentes casos de peculato, má gestão e contratação de pessoal sem transparência tornam urgente uma reforma estrutural do controlo financeiro público.

As principais empresas estatais — Sonangol, Endiama e TAAG — desempenham papéis estratégicos, mas também carregam o peso da desconfiança pública. A Sonangol, por exemplo, tem sido alvo de críticas internacionais pela falta de transparência, apesar dos esforços recentes em adoptar práticas de corporate governance mais próximas dos padrões internacionais. A TAAG, cronicamente deficitária, exige reestruturações profundas e mecanismos digitais de controlo de receitas e despesas. A Endiama, actuando num sector altamente sensível como o diamantino, precisa de sistemas que assegurem rastreabilidade e fiscalização internacional.

Como sublinha De Renzio (2006), “sem transparência e prestação de contas, os recursos públicos tornam-se um bem privado, em vez de um instrumento de desenvolvimento colectivo”. Para Angola, a lição é inequívoca: não basta ter leis e normas, é necessário investir em instituições fortes, sistemas digitais robustos e cultura de responsabilização.

7. Conclusão: O Caminho da Responsabilização e da Transparência

O controlo das finanças públicas e empresariais não deve ser visto como mera burocracia, mas como uma ferramenta de desenvolvimento sustentável e justiça social. Exige vontade política, fortes instituições de fiscalização e tecnologia de ponta, aplicadas tanto à execução financeira quanto aos processos de contratação pública e de pessoal.

As empresas públicas e de capital estatal devem ser entendidas como património colectivo, e não como instrumentos de enriquecimento privado ou plataformas de clientelismo político. Experiências internacionais mostram que, quando bem geridas e fiscalizadas, podem ser motores de inovação e crescimento.

A lição global é clara e aplicável a Angola: sem controlo eficaz, a gestão pública converte-se em terreno fértil para a corrupção; com sistemas digitais integrados, transparência e responsabilização, abre-se caminho para a reconstrução da confiança pública e para um desenvolvimento inclusivo e sustentável.

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