Análise

Do betão à enxada: o êxodo urbano como novo paradigma socioeconómico para Angola

Publicado

em

 “O campo deixou de ser um espaço de atraso e passou a ser um lugar de reinvenção, inovação e liberdade económica.”  – José Eli da Veiga, economista e professor da Universidade de São Paulo

Vivemos um tempo em que os sinais do desenvolvimento já não apontam, necessariamente, para os arranha-céus das cidades, nem para os escritórios climatizados dos centros urbanos. Há um novo movimento silencioso, mas crescente, que inverte o fluxo da migração urbana. Trata-se do êxodo urbano, o fenómeno em que as pessoas, voluntariamente, começam a regressar ao campo, em busca de mais qualidade de vida, oportunidades económicas e reconexão com a natureza. E, surpreendentemente para muitos, este regresso acontece até entre profissionais cujas carreiras não têm qualquer ligação directa com a agricultura.

Em Angola, onde os centros urbanos estão cada vez mais congestionados, desiguais e disfuncionais, impõe-se uma reflexão profunda sobre este fenómeno. Poderá a agricultura e o mundo rural, historicamente negligenciados, tornar-se a nova fronteira do desenvolvimento sustentável? E mais do que isso: poderá o campo tornar-se num espaço atractivo para engenheiros, professores, programadores, empreendedores, artistas e gestores?

A resposta é sim, desde que o retorno ao campo seja sustentado por políticas inteligentes, infra-estruturas adequadas e uma nova narrativa cultural.

1. As cidades já não são o único destino

O crescimento urbano em Angola foi, durante décadas, acelerado e desorganizado. O êxodo rural, motivado pela guerra, pelo sonho do emprego formal e pela busca de serviços essenciais, levou milhares a abandonar as zonas rurais em direcção às cidades. Luanda, Benguela, Huambo, Lubango e outras tornaram-se centros de atracção populacional, mas à custa de um crescimento urbano desordenado.

Hoje, as cidades angolanas apresentam sinais de saturação: trânsito caótico, poluição, criminalidade, informalidade laboral e serviços públicos em colapso. Segundo dados do Banco Mundial (2022), mais de 65% dos jovens urbanos em Angola encontram-se no desemprego ou na economia informal. Por outro lado, os campos continuam férteis, mas subaproveitados. Temos terra, clima, recursos hídricos e juventude, mas não temos políticas públicas consistentes para transformar esse potencial em prosperidade rural.

Como afirmou o economista Amartya Sen, Prémio Nobel da Economia, “a pobreza não é apenas a falta de rendimento, mas a negação de capacidades”. E em Angola, nega-se às zonas rurais as condições para exercerem plenamente as suas capacidades produtivas, sociais e culturais.

2. O campo como território de futuro

O campo não deve ser visto apenas como espaço de produção agrícola, mas como território de vida, inovação e cidadania plena. Os desafios alimentares, ambientais e económicos do século XXI exigem novas formas de ocupação do território e de produção de riqueza. E é aqui que o campo se revela como oportunidade estratégica.

A agricultura, mesmo sendo o principal motor do mundo rural, não é a única alavanca. O campo pode acolher actividades como o turismo ecológico e comunitário, as energias renováveis, a economia digital (com trabalho remoto), a biotecnologia, o artesanato de exportação, a gastronomia de raiz e até indústrias criativas.

Em países como a China, o movimento de retorno ao campo é apoiado por políticas que valorizam o espaço rural como parte da solução para os desequilíbrios sociais e ambientais. As chamadas “cidades-vilarejo” integram serviços modernos com modos de vida rurais sustentáveis. No Brasil, os “neo-rurais”, jovens urbanos que decidem viver e empreender no campo, têm crescido, com apoio de microcrédito e tecnologias agrícolas. Em Portugal, pequenos municípios criaram “vales de regresso” para atrair famílias e trabalhadores para as zonas do interior.

O que todos esses exemplos têm em comum? Visão estratégica, valorização do território e políticas públicas que não olham para o campo como problema, mas como solução.

3. Profissões urbanas no contexto rural: uma nova lógica de ocupação

O retorno ao campo não deve ser entendido como retrocesso, nem restrito aos camponeses. É preciso compreender que o mundo rural também necessita de professores, técnicos de saúde, administradores, programadores, engenheiros, artistas e gestores de projectos. Uma aldeia conectada à internet pode abrigar um designer gráfico que trabalhe remotamente para clientes em qualquer parte do mundo. Um professor pode usar plataformas digitais para leccionar à distância, vivendo com mais tranquilidade e segurança no interior.

Este modelo já é realidade em diversos países e pode, com políticas acertadas, tornar-se uma realidade também em Angola.

Como referia Paulo Freire, “não se pode falar de desenvolvimento sem a participação activa dos sujeitos”. A revitalização rural não depende apenas de políticas, mas da capacidade de envolver as pessoas com dignidade, tecnologia e visão de futuro.

4. Propostas concretas para um êxodo urbano positivo em Angola

1. Zonas rurais inteligentes e sustentáveis
Investir em energia solar, internet por satélite, acesso à água potável, transporte público rural e serviços digitais. A conectividade é a base do novo rural.

2. Educação técnica adaptada ao território
Criar escolas técnicas agrárias, centros de formação em agro-indústria, agroecologia, drones agrícolas, marketing rural e gestão cooperativa.

3. Criação de ecossistemas rurais de inovação
Incubadoras de negócios nas comunas, apoio a startups agro-industriais, microcrédito rural com juros bonificados, e programas de mentoria técnica para jovens empreendedores.

4. Incentivos fiscais e subsídios para fixação rural
Incentivos fiscais para profissionais que decidam mudar-se para o interior, construção de habitações rurais subsidiadas e acesso à terra com segurança jurídica.

5. Fortalecimento das cadeias de valor rural
Apoio logístico para o escoamento da produção, cooperativas modernizadas, armazéns com refrigeração, estradas de acesso e mercados agrícolas digitais.

6. Turismo rural e valorização cultural local
Promoção de rotas turísticas rurais, festivais culturais nas aldeias, gastronomia tradicional e práticas sustentáveis de ecoturismo, integrando as comunidades locais.

7. Mudança de mentalidade e narrativa pública
Os meios de comunicação social, o sistema de ensino e os líderes de opinião devem ajudar a transformar a imagem do campo, de espaço de pobreza para espaço de oportunidade, inovação e realização.

5. Um novo pacto territorial

O retorno ao campo é também um acto político e civilizacional. Representa o reconhecimento de que o modelo urbano-industrial não resolve todos os problemas da modernidade. Precisamos de um novo pacto territorial que valorize o país profundo, onde ainda existem reservas de solidariedade, de saber ancestral e de recursos naturais.

Como dizia Muhammad Yunus, Prémio Nobel da Paz e criador do microcrédito, “se queremos um desenvolvimento duradouro, devemos começar pela aldeia”. E é nas aldeias de Angola que pode nascer o futuro de uma nação mais equilibrada, justa e sustentável.

6. Conclusão: do regresso à terra, à reconquista da dignidade

O êxodo urbano é uma oportunidade histórica para Angola repensar o seu modelo de desenvolvimento. Não se trata de abandonar as cidades, mas de equilibrar o país. O retorno ao campo, se bem orientado, pode reduzir a pressão urbana, dinamizar as economias locais, promover a segurança alimentar e oferecer aos jovens uma alternativa viável à pobreza e à emigração clandestina.

O campo pode ser muito mais do que lavoura: pode ser liberdade económica, criatividade social, inovação sustentável e cidadania plena.

E talvez, daqui a alguns anos, possamos dizer com orgulho: o futuro começou na aldeia.

Deixar uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Exit mobile version