Análise

Cólera em Angola: curva em queda, janela de ouro para eliminação até 2030

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A epidemia de cólera iniciada em Angola a 31 de Dezembro de 2024 entrou numa fase claramente descendente. Até 20 de Julho de 2025, o país registou 27 566 casos e 769 óbitos, o que corresponde a uma letalidade global de cerca de 2,8 %. Nas últimas 24 horas (referentes a 20 de Julho de 2025) foram notificados apenas oito novos casos — cinco na Lunda-Norte e um em cada uma das províncias do Cuanza-Sul, Luanda e Huíla — e registou-se um óbito extra-hospitalar; com um denominador tão pequeno, a letalidade diária subiu para 12,5 %.

Depois de uma escalada rápida no primeiro trimestre de 2025, com picos superiores a quatro centenas de casos diários, a curva epidémica entrou num declínio persistente; nas semanas mais recentes, os registos convergem para valores de um só dígito, sinal de transmissão residual. Essa tendência reflecte-se também na carga assistencial: apenas 23 doentes permaneciam internados em todo o país, enquanto 17 receberam alta no mesmo período de 24 horas.

Geograficamente, o foco mantém-se concentrado no nordeste (Lunda-Norte), com notificações esporádicas e dispersas noutras províncias, sugerindo cadeias de transmissão curtas e cada vez mais contidas. Em síntese, o surto encontra-se numa fase final de controlo progressivo, mas ainda não está completamente interrompido; mantêm-se a vigilância activa e as acções de resposta focalizada nos municípios com casos.

A quebra sustentada da transmissão de cólera em Angola resulta de quatro frentes de resposta que avançaram em cascata durante o primeiro semestre de 2025. A primeira foi a vacinação em massa: a campanha-piloto de 3 a 7 de Fevereiro alcançou cerca de um milhão de pessoas nas províncias mais afectadas e, posteriormente, um segundo e um terceiro round adicionaram dois milhões de doses, reforçando sobretudo a protecção colectiva na Lunda-Norte e no Cuanza-Sul. Essa barreira imunológica reduziu rapidamente o número de susceptíveis e quebrou a cadeia de contágio.

Em paralelo, intervenções de Água, Saneamento e Higiene (WASH) diminuíram a exposição diária ao Vibrio cholerae: distribuição sistemática de água tratada nos bairros periurbanos de Luanda, kits de cloro e campanhas porta-a-porta de lavagem das mãos; instalação de sistemas de filtração e reparação da rede hídrica em unidades sanitárias; e inclusão de investimentos estruturais em abastecimento e saneamento no plano nacional de resposta.

A terceira frente foi a descentralização da assistência clínica, com centros de tratamento de cólera e postos de reidratação oral abertos em praticamente todos os municípios afectados, o que reduziu a letalidade e eliminou portadores ambulantes. Por fim, a vigilância epidemiológica passou a funcionar em tempo real: equipas de resposta rápida isolam cada foco residual, o que se reflecte na descida para números diários de um só dígito.

Para evitar que a cólera volte a ganhar fôlego em Angola, é preciso transformar a actual resposta de emergência num sistema de prevenção permanente, baseado em cinco eixos estruturais.

1 — Água, saneamento e higiene como política de Estado. A barreira decisiva contra o Vibrio cholerae é o abastecimento universal de água potável, saneamento seguro e gestão adequada de resíduos. Cerca de um terço dos angolanos continua sem água tratada, sobretudo em zonas periurbanas e rurais, mantendo viva a vulnerabilidade ao reinício da transmissão. É prioritário concluir as obras de captação, tratamento e distribuição em curso, acelerar projectos de latrinização comunitária, garantir cloração regular dos pontos de venda de água e instituir vigilância da qualidade hídrica em mercados, escolas e unidades sanitárias.

2 — Infra-estruturas resilientes ao clima. As inundações durante a época chuvosa danificam tubagens e contaminam furos, enquanto secas prolongadas levam as famílias a recorrer a charcos inseguros. O plano de prevenção deve prever drenagem urbana, protecção de captações contra cheias, reservas estratégicas de reagentes de potabilização e modelos de gestão capazes de resistir a fenómenos climáticos extremos, cada vez mais frequentes na África Austral.

3 — Vigilância e laboratório em tempo real. Depois do pico de 2025, o sistema de notificação não pode abrandar: Angola precisa de manter vigilância integrada das doenças diarreicas, com testes rápidos distribuídos até ao nível dos postos de saúde, confirmação laboratorial nos hospitais de referência e partilha diária de dados em plataformas digitais, de modo a actuar em 24 horas sobre qualquer foco inicial.

4 — Vacinação preventiva e stocks de contingência. As doses recebidas em 2025 devem servir não apenas para concluir a campanha reactiva, mas também para criar um stock nacional, mobilizável antes da estação chuvosa nas províncias historicamente mais afectadas (Lunda-Norte, Luanda, Cuanza-Sul). Integrar a vacina oral contra a cólera no Plano Nacional de Imunização, com calendários bianuais nas áreas de alto risco, corta a cadeia de contágio sempre que a qualidade da água vacila.

5 — Sistema de saúde pronto e comunidades engajadas. Manter centros de tratamento de cólera em stand-by, formar equipas de resposta rápida em todos os municípios e garantir kits de reidratação e antibióticos impede que casos isolados se transformem em surtos. Paralelamente, campanhas de comunicação de risco, educação para a lavagem das mãos e mecanismos de escuta comunitária devem funcionar de forma permanente, combatendo rumores e incentivando a procura precoce de cuidados.

Governança e financiamento transversal. Todos estes pilares assentam num Plano Nacional de Controlo da Cólera, revisto anualmente, com orçamento próprio, indicadores mensais e coordenação interministerial que envolva Saúde, Energia e Águas, Ambiente, Educação e Administração do Território, além de parceiros como a OMS, UNICEF, Gavi e Africa CDC. A experiência dos actuais grupos de trabalho deve evoluir de task force para um mecanismo permanente de redução de riscos sanitários.

Se forem mantidas de forma contínua — e não apenas durante emergências — estas medidas podem quebrar o ciclo histórico de reaparecimento da cólera e conduzir à sua eliminação como ameaça de saúde pública até 2030.

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