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Análise

Cofres da Justiça em Angola: entre a autonomia administrativa e a fragmentação do Tesouro Público

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1. Introdução: um debate que transcende a cerimónia

No dia 16 de Julho, no edifício do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), terá lugar a cerimónia solene de nomeação dos membros da Comissão Executiva do Cofre Geral dos Tribunais da Jurisdição Comum e da Procuradoria-Geral da República (PGR), nos termos da Lei n.º 5/25, de 25 de Abril. O acto será presidido pelo Juiz Conselheiro Joel Leonardo, Presidente do Conselho de Supervisão do Cofre, e contará com a presença do Procurador-Geral da República, Dr. Hélder Pitta Gróz.

Trata-se de um momento institucional relevante para o sistema judiciário nacional. No entanto, mais do que uma simples formalidade protocolar, esta nomeação suscita uma reflexão profunda sobre o actual modelo de financiamento da justiça em Angola. Por detrás da criação dos cofres, oculta-se um debate estruturante sobre a autonomia financeira dos órgãos de soberania, os limites da descentralização fiscal e os riscos associados à fragmentação do Tesouro Público.

Será que a criação de fundos próprios, mesmo com respaldo legal, fortalece o sistema judicial ou, pelo contrário, contribui para a desarticulação do sistema orçamental nacional e a opacidade na gestão dos dinheiros públicos? Que consequências sociais e políticas advêm da suspensão de contas judiciais por força de uma transição institucional mal planeada?

2. A função da Conta Única do Tesouro: centralizar para melhor governar

A Conta Única do Tesouro (CUT) é uma das principais inovações introduzidas nas reformas de modernização da administração financeira pública em Angola, sobretudo após a aprovação da Lei do Sistema Integrado de Gestão Financeira do Estado (SIGFE). O seu objectivo central é evitar a dispersão de recursos e garantir que todas as receitas do Estado sejam canalizadas para uma única estrutura orçamental, favorecendo a gestão eficiente, o controlo transparente e o planeamento estratégico dos gastos públicos.

Allen e Tommasi (2001) consideram que “a CUT constitui um instrumento incontornável para assegurar disciplina fiscal, racionalização dos fundos e redução dos riscos de má gestão e corrupção”.

A existência de múltiplas contas bancárias em nome de instituições públicas, sem ligação directa ao orçamento central, foi durante anos uma das maiores causas de perda de controlo sobre os recursos do Estado. Por essa razão, a tendência internacional tem sido no sentido da centralização financeira, com mecanismos de transferência e execução orçamental baseados em prioridades nacionais previamente definidas e sujeitas ao escrutínio democrático.

3. Entre a autonomia funcional e o feudalismo institucional

Num Estado Democrático de Direito, a autonomia dos tribunais e do Ministério Público é inegociável, mas deve ser compreendida com equilíbrio e responsabilidade. Esta autonomia é essencialmente funcional, ou seja, deve garantir que os magistrados actuem com total independência nas suas decisões, sem interferências do Executivo ou de qualquer outro poder.

No entanto, transformar essa autonomia funcional em autonomia financeira absoluta, com capacidade de arrecadação e execução de fundos próprios, pode representar uma grave ameaça ao equilíbrio institucional. Como defende o constitucionalista Jorge Reis Novais (2010), “a separação de poderes não pode ser confundida com separação orçamental”.

Quando órgãos de soberania passam a arrecadar receitas para uso exclusivo, como no caso dos 40% das taxas de justiça atribuídas ao Cofre Geral dos Tribunais e da PGR, cria-se uma lógica de autofinanciamento institucional que pode fomentar desigualdades e enfraquecer o princípio da solidariedade orçamental.

Ao longo da história, o desmembramento do poder fiscal sempre esteve associado a fenómenos de feudalização administrativa. Hoje, o risco de surgirem “ilhas de poder financeiro” dentro da estrutura do Estado é real, e prejudicial para a coesão e eficiência dos serviços públicos.

4. A questão da equidade orçamental entre instituições públicas

Um dos aspectos mais críticos deste debate reside na profunda desigualdade orçamental que os cofres provocam entre diferentes órgãos do Estado. Enquanto tribunais e procuradorias podem, por força legal, arrecadar parte das receitas que ajudam a gerar, outras instituições igualmente essenciais para o funcionamento da justiça e do Estado Democrático, como os Serviços de Investigação Criminal, as defensorias públicas, a Provedoria de Justiça, os tribunais administrativos e os serviços forenses, permanecem à margem desse sistema, totalmente dependentes das dotações inscritas no OGE.

Esta realidade agrava o fosso institucional e compromete a prestação equitativa de serviços públicos. Conforme analisa Raul Velloso (2013), “a criação de fundos autónomos, quando não acompanhada por uma política de justiça orçamental, agrava as assimetrias e enfraquece o desempenho global do Estado”.

O princípio da equidade exige que todas as instituições essenciais sejam financiadas em função das suas atribuições constitucionais, e não da sua capacidade de gerar receitas.

5. A justiça como serviço público e não como centro arrecadador

A criação de cofres no sistema de justiça pode distorcer a percepção do próprio papel da justiça. Quando tribunais passam a depender directamente das taxas que arrecadam, corre-se o risco de transformar a justiça num mecanismo de arrecadação, afastando-a da sua natureza essencial: garantir direitos, resolver conflitos e promover a paz social.

Carlos Nino (1996) alerta que “a legitimidade da justiça reside na sua imparcialidade, acessibilidade e universalidade”. Qualquer tentativa de financiar a justiça com base em métricas de arrecadação compromete esses princípios e favorece o aumento de taxas processuais desproporcionais, penalizando os cidadãos mais pobres.

Em vez de centros arrecadadores, os tribunais devem ser vistos como instituições de garantia dos direitos fundamentais, cujo financiamento deve decorrer da vontade política expressa no orçamento do Estado.

6. Lições de outros países: experiências e advertências

Vários países têm enfrentado desafios semelhantes. Em Portugal, por exemplo, apesar das dificuldades financeiras, manteve-se firme o princípio da unidade orçamental. As taxas de justiça entram na Conta Única do Tesouro, e o funcionamento do sistema judiciário depende de dotações orçamentais devidamente aprovadas na Assembleia da República.

No Brasil, embora existam fundos judiciais, estes são submetidos a um rigoroso sistema de controlo e integrados no regime fiscal do Estado, sem margem para autonomia ilimitada. O mesmo acontece em Cabo Verde, Moçambique, África do Sul e em países da OCDE, onde a autonomia dos órgãos de justiça é resguardada no plano funcional, e não financeiro.

7. O caso angolano: entre a legalidade e a prudência fiscal

É inegável que a Lei n.º 5/25 conferiu respaldo legal à criação do Cofre Geral dos Tribunais e da PGR. Contudo, é preciso sublinhar que a legalidade não exclui a necessidade de prudência, bom senso e sensibilidade social.

A suspensão de contas bancárias dos tribunais de comarca, por orientação do CSMJ no contexto de implementação do Cofre, provocou efeitos colaterais indesejados. As contas de depósito obrigatório, utilizadas para guardar cauções, valores de indemnização e restituições processuais, foram congeladas, impedindo que os ofendidos nos processos recebessem os valores pagos pelos arguidos, mesmo depois da justiça ter sido feita.

Este cenário foi relatado com preocupação por magistrados judiciais no terreno. Em casos concretos, viúvas e filhos de vítimas de homicídio negligente, cujas indemnizações foram pagas, encontram-se há meses à espera de que o tribunal desbloqueie os fundos, o que não pode fazer devido a ordens administrativas superiores.

Trata-se de uma violação indirecta do direito à justiça, pois apesar da sentença, os ofendidos não conseguem ver os seus direitos satisfeitos. O Artigo 57.º, n.º 1 da Lei n.º 29/22, é claro ao afirmar que os tribunais são fiéis depositários dos valores pertencentes às partes processuais. Impedi-los de movimentar tais contas é, no mínimo, uma grave incoerência legal e moral.

Mais do que um problema técnico, estamos perante uma questão de justiça social e dignidade humana. Em última instância, a responsabilidade política recai sobre os órgãos de soberania, incluindo o Presidente da República, enquanto Primeiro Magistrado da Nação, cuja autoridade moral pode ser questionada perante o povo sempre que a justiça falha na sua missão última: resolver os problemas concretos dos cidadãos.

8. Caminhos para uma reforma coerente das finanças públicas

O momento é oportuno para que Angola reflicta sobre o modelo de financiamento da justiça e caminhe rumo a uma reforma estrutural e integrada das finanças públicas. Para tal, recomenda-se:

Unificação de todas as receitas públicas na Conta Única do Tesouro (CUT), com mecanismos de execução ágeis e transparentes;

Financiamento das instituições de justiça com base no Orçamento Geral do Estado, conforme critérios de justiça social, equidade territorial e eficiência operacional;

Criação de um Fundo Nacional da Justiça, inscrito no OGE, com gestão transparente e alocação planificada para tribunais, procuradorias, defensorias, polícias judiciais e demais órgãos do sector;

Auditorias regulares, independentes e públicas sobre todos os fundos autónomos, com relatórios submetidos à Assembleia Nacional e divulgados à sociedade civil;

Consulta às bases e aos magistrados que estão no terreno, para evitar decisões administrativas desfasadas da realidade.

Como afirmam Allen e Tommasi (2001), “a disciplina fiscal e a unidade orçamental são condições prévias para a sustentabilidade da autonomia institucional”.

9. Conclusão: o que está realmente em jogo

No fundo, o debate em torno do Cofre Geral dos Tribunais e da PGR não é apenas uma questão de gestão financeira. É um debate sobre visão de Estado, modelo de governação e compromisso com a justiça social.

Angola precisa decidir se continuará a construir um Estado coeso, responsável e transparente, ou se permitirá a consolidação de estruturas paralelas de arrecadação e execução financeira, sem coordenação macroeconómica nem controlo democrático.

Não há República possível com fragmentação institucional. A justiça é demasiado importante para ser entregue à lógica de mercado ou ao autofinanciamento corporativo.

A confiança pública na justiça não depende apenas de boas leis, mas da sua execução coerente, digna e transparente. E isso começa com uma visão de Estado capaz de integrar, ouvir e respeitar todas as instituições e, acima de tudo, os cidadãos.

Denílson Adelino Cipriano Duro é Mestre em Governação e Gestão Pública, com Pós-graduação em Governança de TI. Licenciado em Informática Educativa e Graduado em Administração de Empresas, possui uma sólida trajectória académica e profissional voltada para a governação, gestão de projectos, tecnologias de informação, marketing político e inteligência competitiva urbana. Actua como consultor, formador e escritor, sendo fundador da DL - Consultoria, Projectos e Treinamentos. É autor de diversas obras sobre liderança, empreendedorismo e administração pública, com foco em estratégias inovadoras para o desenvolvimento local e digitalização de processos governamentais.

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