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Opinião

CENSO 2024: qualidade da tomada de decisão na governação local baseada em dados?

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1. Introdução: O Desafio da Decisão Política no Espaço Local

O século XXI impõe aos Estados modernos o desafio de responder com celeridade, eficiência e racionalidade às necessidades das suas populações, especialmente em ambientes urbanos e locais em constante transformação. Em Angola, a realidade das administrações municipais evidencia uma série de limitações estruturais que comprometem o processo de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas. Tais limitações passam, sobretudo, pela carência de dados actualizados, ausência de cultura de planeamento, baixa capacidade institucional e fraca articulação entre os níveis de governação.

A descentralização em curso no país e os preparativos para as futuras autarquias locais ampliam ainda mais a responsabilidade dos governos municipais. No entanto, sem um sistema moderno de gestão baseado em informação, o risco é alto: a descentralização poderá converter-se num exercício ineficaz, sem melhorias tangíveis na vida dos cidadãos. Assim, torna-se urgente adoptar novas ferramentas tecnológicas, como o Big Data e a Inteligência Artificial (IA), capazes de oferecer bases sólidas para a tomada de decisão local, reduzindo o improviso e promovendo a acção estratégica.

2. A Era da Informação: O Poder dos Dados na Gestão Pública

Vivemos num contexto em que a informação se tornou o principal activo económico, político e social. Segundo Castells (2005), na “sociedade em rede”, o poder está cada vez mais nas mãos daqueles que detêm, interpretam e aplicam dados. Governos que não dispõem de dados fiáveis e em tempo real estão condenados à tomada de decisões erráticas, desajustadas da realidade local e vulneráveis ao populismo administrativo.

O Big Data surge como a resposta tecnológica para este desafio. Trata-se de um sistema que permite recolher, armazenar, tratar e analisar grandes volumes de dados provenientes de diversas fontes – desde censos, plataformas digitais, sensores urbanos, bases de dados administrativas, até redes sociais e serviços públicos. Quando estes dados são combinados com Inteligência Artificial, abrem-se caminhos para uma administração pública mais preditiva, estratégica e orientada para resultados. Os algoritmos de IA são capazes de identificar padrões, prever comportamentos e sugerir cenários futuros com base em dados reais.

Num país como Angola, onde o planeamento continua a ser, muitas vezes, uma ficção e os relatórios estatísticos raramente orientam as decisões de governo, a utilização do Big Data pode representar uma revolução silenciosa na governação pública.

3. Censo 2024: Uma Oportunidade Histórica para Angola

A realização do Censo Geral da População e Habitação de Angola em 2024 marca um momento crucial para a história recente do país. Trata-se não apenas de uma actividade estatística, mas de um exercício estratégico de soberania informacional, que permitirá ao Estado conhecer com maior profundidade as características da sua população, distribuição territorial, condições habitacionais e dinâmicas socioeconómicas.

É inegável que os dados do Censo de 2014 já se encontram desactualizados, sobretudo perante a intensa urbanização, a mobilidade populacional e as novas vulnerabilidades sociais surgidas nos últimos anos. O Censo 2024, se bem conduzido, poderá fornecer bases sólidas para políticas públicas mais justas, eficazes e territorializadas. Mais do que nunca, os governos municipais necessitam de informações granulares para planear escolas, hospitais, vias de comunicação, estratégias de combate à pobreza e acções para inclusão produtiva.

Os dados censitários também poderão alimentar sistemas de Big Data, permitindo a construção de modelos analíticos robustos, que combinem informação demográfica, geoespacial e económica, orientando a tomada de decisões com evidências concretas e em tempo útil. Tal como afirma Drucker (1999), “o que não se mede, não se pode melhorar” — e o Censo 2024 constitui uma oportunidade de ouro para começar a medir, comparar, corrigir e melhorar.

4. Big Data e IA: Ferramentas para a Governação Inteligente

A governação inteligente vai muito além da digitalização dos serviços públicos. Trata-se de uma nova lógica de pensar, planear e executar políticas públicas com base em conhecimento sistematizado. A aplicação de Big Data e IA permite aos municípios:

Identificar zonas com maior índice de pobreza, violência ou exclusão;

Detectar padrões de evasão escolar, surtos de doenças ou degradação ambiental;

Prever fenómenos sociais e antecipar medidas de mitigação;

Monitorar, em tempo real, a execução orçamental e a prestação de serviços;

Avaliar o impacto real das políticas adoptadas.

Por exemplo, algoritmos de IA podem ser usados para prever a procura por serviços de saúde, planear melhor os recursos humanos e medicamentos. Ou ainda para analisar a mobilidade urbana e reconfigurar rotas de transporte colectivo. Ao integrar estas ferramentas à rotina dos governos locais, a administração pública deixa de ser reactiva para se tornar proactiva, eficiente e centrada no cidadão.

5. O Papel da Inteligência Estratégica na Gestão Municipal

A gestão pública moderna exige inteligência estratégica, isto é, a capacidade de transformar dados em decisões úteis, decisões em acções concretas e acções em resultados sustentáveis. Edgar Morin (2000) defende que “a inteligência deve ser capaz de lidar com a incerteza, o imprevisto e o complexo”. Neste sentido, os municípios precisam de desenvolver núcleos internos de análise de dados, com equipas multidisciplinares capazes de cruzar informação, gerar conhecimento e apoiar os decisores públicos.

O papel das universidades, centros de pesquisa e institutos estatísticos também é vital neste processo. É necessário construir ecossistemas de inteligência territorial, em que as autarquias actuem como catalisadoras de inovação, conectadas ao meio académico, empresarial e comunitário.

Uma gestão municipal sem dados é como um comandante que navega sem bússola. A inteligência estratégica deve ser institucionalizada, treinada e valorizada como pilar da boa governação.

6. Ética, Legalidade e Inclusão na Era dos Dados

Nem tudo são flores no campo da tecnologia. O uso de dados em grande escala levanta importantes questões éticas, legais e sociais. Conforme alerta Zuboff (2019), vivemos numa era de capitalismo de vigilância, onde as grandes corporações e, por vezes, os próprios governos podem utilizar dados para controlar, manipular ou excluir.

Assim, qualquer iniciativa de Big Data e IA na administração pública deve respeitar:

A protecção da privacidade e dos dados pessoais, com legislações claras e mecanismos de controlo;

A transparência algorítmica, isto é, os critérios pelos quais a IA toma decisões devem ser compreensíveis para os cidadãos;

A inclusão digital, para garantir que todas as camadas da sociedade beneficiem das inovações tecnológicas.

Em Angola, é urgente aprovar e implementar um quadro legal moderno para a protecção de dados e cibersegurança, ao mesmo tempo que se promove a literacia digital nos municípios, nas escolas e nas instituições públicas.

7. Proposta de Modelo Angolano de Apoio à Decisão Local

Como solução concreta, propõe-se o desenvolvimento de um Modelo Estratégico Angolano de Apoio à Decisão Política Municipal, baseado em Big Data e IA, estruturado nos seguintes pilares:

1. Plataforma Integrada de Dados Municipais (PIDM): Repositório digital que unifica dados do Censo 2024, registos administrativos, bases de dados locais, com acesso para gestores públicos;

2. Sistema de Inteligência Artificial Aplicada (SIAA): Algoritmos treinados com dados municipais, capazes de gerar análises preditivas e sugestões de política;

3. Painéis de Monitoria e Avaliação de Políticas Públicas (P-MAPP): Dashboards com indicadores de desempenho em áreas-chave como saúde, educação, finanças e urbanismo;

4. Interface de Participação Cidadã (IPC): Ferramentas digitais que permitam aos cidadãos participar da formulação e monitoria das políticas públicas, promovendo a transparência e a co-governação.

Este modelo pode ser adoptado como política pública nacional, começando por municípios-piloto em cada província, com apoio técnico do INE, do Ministério da Administração do Território, universidades e parceiros internacionais.

8. Lições Regionais: Exemplos Africanos de Inovação Local

O continente africano tem mostrado experiências inspiradoras de uso de tecnologia para o bem público. O Ruanda utiliza IA para prever surtos de doenças, como a malária e o ébola, permitindo uma resposta rápida e eficiente. Cabo Verde apostou numa profunda digitalização dos seus serviços municipais, melhorando a eficiência e a confiança pública. Quénia e África do Sul lideram projectos de dados abertos, com plataformas de visualização pública para os cidadãos acompanharem o uso do orçamento local.

Estes casos demonstram que a inovação não é privilégio dos países ricos, mas sim uma escolha estratégica. O que é necessário é vontade política, parcerias sólidas e visão de futuro.

9. Conclusão: A Hora da Viragem Estratégica

A história oferece poucas janelas de oportunidade para a mudança estrutural. O Censo 2024, aliado às potencialidades do Big Data e da IA, pode tornar-se a base para uma nova era de governação municipal em Angola. Uma era onde os dados falam mais alto que o partidarismo; onde o planeamento supera o improviso; onde o cidadão é ouvido e participa das decisões.

Como sublinha Mário Lemos Pires (2004), “não há desenvolvimento sem organização, nem organização sem conhecimento”. Está nas mãos dos líderes públicos locais abandonar a escuridão da ignorância estatística e abraçar a clareza da governação baseada em dados.

A questão que se impõe é esta: queremos continuar a gerir no escuro, ou vamos permitir que os dados nos guiem para um futuro mais justo, eficiente e transparente?

Denílson Adelino Cipriano Duro é Mestre em Governação e Gestão Pública, com Pós-graduação em Governança de TI. Licenciado em Informática Educativa e Graduado em Administração de Empresas, possui uma sólida trajectória académica e profissional voltada para a governação, gestão de projectos, tecnologias de informação, marketing político e inteligência competitiva urbana. Actua como consultor, formador e escritor, sendo fundador da DL - Consultoria, Projectos e Treinamentos. É autor de diversas obras sobre liderança, empreendedorismo e administração pública, com foco em estratégias inovadoras para o desenvolvimento local e digitalização de processos governamentais.

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