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Opinião

Autarquias locais em Angola: medo de perder o controlo ou falta de vontade política?

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A implementação das autarquias locais em Angola tem sido um tema amplamente debatido, mas, infelizmente, permanece um projecto eternamente adiado. Apesar de estar constitucionalmente prevista desde 2010, a descentralização efectiva do poder esbarra em obstáculos políticos, falta de vontade governativa e receios de que a autonomia local possa comprometer o monopólio central sobre a administração pública. Como destaca Boaventura de Sousa Santos (2003), “a democracia só se fortalece quando há uma efectiva participação dos cidadãos nas decisões que afectam a sua vida quotidiana”. No entanto, Angola continua a perpetuar um modelo hipercentralizado que impede a participação efectiva das populações locais na governação dos seus territórios.

A Centralização como Obstáculo à Democracia e à Participação Social

A recusa sistemática em implementar as autarquias locais representa um entrave ao aprofundamento da democracia participativa em Angola. Como alerta Norberto Bobbio (1986), “a democracia não se esgota no voto, mas na capacidade dos cidadãos de influenciar as decisões públicas”. O modelo actual da Administração Pública angolana mantém um forte controlo central sobre as decisões locais, transformando as administrações municipais em meras extensões do governo central e limitando o envolvimento da sociedade civil na governação.

Sem um modelo autárquico funcional, as comunidades locais não têm o poder de definir as suas prioridades nem de gerir os seus próprios recursos. A ausência de legitimidade política a nível local mina a confiança nas instituições e perpetua um ciclo de ineficiência e corrupção. Para Robert Dahl (1989), “a legitimidade política decorre da proximidade entre governantes e governados”, o que explica por que razão muitas administrações locais são vistas como ineficazes e desconectadas das reais necessidades da população.

Além disso, a falta de descentralização gera um paradoxo: enquanto o governo central defende o princípio da participação popular, mantém estruturas burocráticas que dificultam qualquer influência efectiva da população sobre as políticas locais. A título de exemplo, as administrações municipais continuam a depender de Luanda para quase todas as decisões financeiras e administrativas, tornando-as reféns da morosidade e da falta de sensibilidade às realidades locais.

O Impacto da Ausência das Autarquias no Desenvolvimento Local

A ausência de autarquias locais limita significativamente o desenvolvimento dos municípios e comunas, pois impede que sejam criadas políticas públicas adaptadas às realidades específicas de cada território. Como explica Amartya Sen (1999), “o desenvolvimento deve ser entendido como a expansão das liberdades substantivas, permitindo às pessoas terem maior controlo sobre as suas vidas”.

Nos municípios angolanos, essa falta de autonomia traduz-se em problemas estruturais persistentes: a degradação das infra-estruturas, a escassez de serviços básicos e a ausência de incentivos para o investimento privado. Um município que não tem capacidade de arrecadar e gerir os seus próprios recursos financeiros nunca poderá planear de forma estratégica o seu crescimento. O modelo actual de governação centralizada mantém os municípios como meros consumidores de fundos do Orçamento Geral do Estado, sem espaço para a inovação e adaptação às realidades locais.

Além disso, a ausência de um modelo autárquico eficaz afecta directamente o ambiente de negócios. Empresas locais enfrentam dificuldades para obter licenças, apoio institucional e infra-estruturas adequadas. Como defende Michael Porter (1990), “o desenvolvimento competitivo das regiões depende de um ambiente institucional favorável”, algo que não se verifica quando a tomada de decisões económicas e urbanísticas é feita de forma distante e descontextualizada.

Num contexto onde a diversificação económica se impõe como prioridade, a centralização administrativa torna-se um obstáculo ao crescimento. Municípios que poderiam desenvolver estratégias específicas para fomentar a agricultura, o turismo ou a indústria local veem-se impedidos de o fazer porque a gestão de recursos continua concentrada no poder central.

Cabo Verde: Um Exemplo de Sucesso na Descentralização

Cabo Verde surge como um dos melhores exemplos de descentralização eficaz em África. Ao contrário de Angola, onde a resistência à criação das autarquias locais tem sido sistemática, Cabo Verde implementou um modelo de governação local que fortalece a democracia e impulsiona o desenvolvimento.

Desde 1991, Cabo Verde adoptou um sistema autárquico que confere autonomia administrativa e financeira aos municípios. Cada município tem o poder de planear e executar projectos de desenvolvimento, arrecadar receitas próprias e definir prioridades conforme as necessidades locais. Esse modelo tem sido crucial para o sucesso do arquipélago em várias áreas, como o turismo sustentável e a melhoria da qualidade de vida da população.

O sucesso de Cabo Verde deve-se, em grande parte, à transparência na gestão municipal e ao envolvimento activo da população nas decisões locais. O governo central não apenas permitiu a descentralização, como criou mecanismos eficazes de fiscalização e apoio às autarquias, garantindo que a autonomia local não se transformasse em desgovernação. Esse modelo poderia servir de inspiração para Angola, onde a ausência de autarquias continua a perpetuar a ineficiência e a falta de legitimidade do poder local.

Autarquias Locais como Motor da Boa Governação e Transparência

A descentralização administrativa não é apenas uma questão de eficiência, mas também de transparência e combate à corrupção. Segundo Celso Lafer (1988), “a proximidade entre governo e governados reduz as oportunidades para práticas corruptas e aumenta a responsabilização dos líderes locais”. Municípios autónomos poderiam implementar mecanismos de fiscalização mais rigorosos, onde a população tivesse um papel mais activo na supervisão dos gastos públicos e na exigência de resultados concretos.

A experiência de países como Moçambique e África do Sul demonstra que a descentralização fortalece a democracia e promove o desenvolvimento sustentável. Em Moçambique, por exemplo, a descentralização permitiu melhorias significativas nos serviços de saneamento e educação em várias regiões, enquanto na África do Sul, as municipalidades ganharam um papel crucial na expansão do acesso à água e electricidade nas zonas mais remotas.

Conclusão: Um Futuro Incerto para a Descentralização em Angola

A contínua resistência à implementação das autarquias locais em Angola representa um entrave à democracia, à participação social e ao desenvolvimento sustentável. Como argumenta Dworkin (1977), “os direitos dos cidadãos não podem ser sacrificados em nome da conveniência do Estado”. No actual modelo de governação centralizada, o poder continua a ser exercido de forma vertical, ignorando as especificidades e potencialidades locais.

A criação de autarquias locais não deve ser vista como uma ameaça ao poder central, mas sim como uma oportunidade para fortalecer a governação, melhorar a prestação de serviços e dinamizar as economias municipais. A descentralização é um passo essencial para que Angola possa alcançar um desenvolvimento mais equilibrado, inclusivo e transparente. Como afirmou Nelson Mandela (1994), “não há desenvolvimento sem liberdade, e não há liberdade sem responsabilidade governativa”.

Cabo Verde demonstrou que a descentralização não é uma utopia. Pelo contrário, quando bem implementada, fortalece as instituições, melhora a prestação de serviços e promove o desenvolvimento local. Resta saber se Angola seguirá esse exemplo ou continuará a adiar indefinidamente a implementação de um modelo autárquico que já se revelou eficaz em vários contextos africanos. Até quando o país continuará refém da centralização? Até quando os municípios terão de esperar para gerir o seu próprio destino? O tempo dirá, mas a história ensina que nenhuma sociedade prospera sem um poder local legítimo, transparente e próximo das suas comunidades.

Denílson Adelino Cipriano Duro é Mestre em Governação e Gestão Pública, com Pós-graduação em Governança de TI. Licenciado em Informática Educativa e Graduado em Administração de Empresas, possui uma sólida trajectória académica e profissional voltada para a governação, gestão de projectos, tecnologias de informação, marketing político e inteligência competitiva urbana. Actua como consultor, formador e escritor, sendo fundador da DL - Consultoria, Projectos e Treinamentos. É autor de diversas obras sobre liderança, empreendedorismo e administração pública, com foco em estratégias inovadoras para o desenvolvimento local e digitalização de processos governamentais.

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