Análise

Atrasar salário é “tortura económica”: e em Angola é política oficial

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O atraso no pagamento dos salários da função pública em Angola deixou de ser um episódio circunstancial para se transformar numa patologia estrutural do Estado, com implicações profundas na vida económica e emocional das famílias. Numa sociedade onde o servidor público representa um pilar do consumo doméstico, a pontualidade salarial não é apenas um mecanismo administrativo; é um determinante de estabilidade social, dignidade humana e confiança institucional.

John Maynard Keynes já advertia que não se constrói estabilidade económica com instabilidade social. Nesta lógica, o atraso sistemático dos salários coloca milhares de famílias num estado permanente de insegurança, fragilizando a confiança no Estado e no sistema financeiro.

1. O Salário como Pilar da Ordem Social

O salário não é apenas um valor monetário. É o símbolo do contrato social, o reconhecimento material do trabalho prestado e a base do bem-estar familiar. O atraso salarial constitui:

Violação psicológica da segurança pessoal

• Erosão da confiança pública

• Estímulo ao endividamento predatório

• Risco de disrupção social silenciosa

Amartya Sen lembra que a pobreza não significa apenas falta de rendimento, mas perda de liberdade e dignidade. O funcionário público angolano, ao aguardar meses pelo seu salário, vive não apenas carência material, mas humilhação económica, social e emocional, dependendo de fiado, empréstimos informais e solidariedade de familiares.

2. Bancarização sem Humanização: O Paradoxo Angolano

Angola vive uma narrativa institucional de modernização financeira, inclusão bancária e digitalização. Porém, como Celso Furtado advertiu, não há desenvolvimento quando as estruturas não respondem às necessidades humanas.

O trabalhador é muitas vezes obrigado a domiciliar o salário para aceder a crédito, serviços bancários e oportunidades de financiamento. Contudo, quando o Estado atrasa o pagamento, os bancos não suspendem:

Juros de mora

• Multas contratuais

• Cobranças coercivas

• Ameaça de negativação

• Redução ou bloqueio de limites bancários

O risco permanece sempre com o cidadão, não com o sistema financeiro. Exige-se fidelidade ao banco, mas não se oferece reciprocidade social. Joseph Stiglitz destaca que o sistema financeiro deve servir a sociedade, e não o contrário.

3. Responsabilidades da Banca Comercial

Se os bancos se beneficiam da domiciliação salarial como garantia de negócio, devem assumir corresponsabilidade quando o Estado falha.

Os bancos devem implementar:

1. Adiantamento automático de salário sem juros. Em casos de atraso oficial ou recorrente.

2. Suspensão de juros e penalizações para proteger o cliente da injustiça financeira.

3. Linhas de crédito social com juros reduzidos e período de carência

4. Programas de protecção para serviços essenciais, tais como: Água, energia, telecomunicações e educação.

5. Reestruturação automática de crédito sem penalizações

Como Schumpeter defendia, o crédito deve impulsionar e proteger a vitalidade económica da sociedade.

4. Responsabilidades do Banco Nacional de Angola

O Banco Nacional de Angola, como regulador, tem a obrigação de garantir que o sistema financeiro actue com responsabilidade social.

Deve:

1. Criar uma política monetária com foco em protecção do rendimento familiar

2. Implementar moratória social automática, sempre que exista atraso salarial público.

3. Estabelecer um Fundo de Estabilização Salarial Público e Bancário

4. Penalizar práticas bancárias abusivas

5. Assumir papel activo na comunicação oficial sobre atrasos e medidas de mitigação

Karl Polanyi afirmou que a economia deve servir o tecido social. O BNA deve ser guardião não apenas da moeda, mas também da estabilidade social.

5. Consequências do Atraso Salarial

Eis:

• Insegurança social e familiar

• Erosão do crédito dos cidadãos

• Queda do consumo e contracção económica

• Expansão da economia informal

• Perda de confiança institucional

Hyman Minsky reforçou que a instabilidade financeira nasce da incerteza do rendimento. Onde o salário é incerto, a economia treme.

Finalmente, é pertinente referir, se Joseph Schumpeter nos ensinou que não existe prosperidade sem confiança, então a relação entre Estado, sistema financeiro e trabalhador precisa de reconstrução.

A modernidade financeira não se mede pelo número de caixas automáticos ou aplicativos bancários, mas pela capacidade de proteger a dignidade humana.

O salário é vida. Atrasá-lo é negar vida.
E nenhum país se constrói sobre vidas suspensas.

Quem trabalha não pode viver de fiado.
Quem serve o Estado não pode viver de promessa.

A dignidade não se adia. Paga-se. Em dia.

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