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Opinião

Argélia e Marrocos: a escalada de uma guerra fria que deixa África mais frágil

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A expulsão do vice-cônsul marroquino em Orão pela Argélia, na semana passada, não é apenas mais um capítulo na já turbulenta relação entre os dois países. É um sintoma alarmante de como rivalidades históricas, combinadas com ambições geopolíticas e narrativas de soberania, estão a minar a estabilidade do Magrebe e, por extensão, de toda a África. Num continente que clama por unidade para enfrentar desafios como o terrorismo no Sahel, crises alimentares e dependência económica externa, este conflito bilateral serve como um alerta: as feridas do passado colonial e as disputas territoriais mal resolvidas continuam a ser armas perigosas nas mãos de elites políticas pouco interessadas no futuro colectivo.

Raízes de uma Inimizade Estrutural
A Argélia e Marrocos são como dois irmãos que dividem a mesma casa (o Magrebe), mas nunca partilharam a mesma visão de família. Desde a independência da Argélia, em 1962, as fronteiras herdadas do colonialismo francês e espanhol geraram conflitos, como a Guerra das Areias (1963). Porém, a questão que hoje define esta rivalidade é o Saara Ocidental: Marrocos anexou o território em 1975, enquanto a Argélia apoia a Frente Polisário, que exige a autodeterminação da região. Para Argel, Rabat é uma potência expansionista; para Rabat, Argel é um obstáculo ao seu protagonismo regional.

A expulsão do diplomata – justificada com acusações vagas de “comportamentos incompatíveis” insere-se neste tabuleiro. Não se trata de um incidente isolado: em 2021, a Argélia cortou relações diplomáticas e fechou o gasoduto Magrebe-Europa, que passava por Marrocos, privando o país vizinho de receitas milionárias. Agora, ao declarar o diplomata persona non grata, Argel reforça uma estratégia de pressão máxima, usando até supostas ligações do Marrocos ao MAK (Movimento pela Autodeterminação da Cabília), grupo que classifica como terrorista.

O Preço Regional da Desunião Magrebina
O maior prejudicado desta crise é o povo africano. A União do Magrebe Árabe (UMA), criada em 1989 para integrar cinco países, está paralisada há décadas. Sem cooperação económica, a região perde oportunidades críticas: o comércio intra-magrebino representa apenas 3% do total, contra 65% na União Europeia. Enquanto Argélia e Marrocos investem em retórica belicista, jovens africanos arriscam a vida no Mediterrâneo em busca de emprego, e redes jihadistas aproveitam-se de Estados fracos no Mali e Níger para expandir influência.

A rivalidade também contamina organizações continentais. A Argélia, por exemplo, pressiona a União Africana (UA) a manter o Saara Ocidental como membro de pleno direito, enquanto Marrocos, readmitido na UA em 2017 após 33 anos de ausência, busca aliados para legitimar sua ocupação. Este jogo de forças desvia a atenção de temas urgentes, como a implementação da Zona de Livre Comércio Continental Africana (AfCFTA), que depende de corredores estáveis entre o Magrebe e a África Subsariana.

As Consequências para Além das Fronteiras

1. Segurança Colectiva em Risco:
A região do Sahel, já asfixiada por golpes militares e insurgências, pode sofrer com o agravamento da disputa Argélia-Marrocos. Ambos os países apoiam facções opostas na Líbia, por exemplo, alimentando uma guerra civil que já destabilizou rotas de migração e tráfico de armas. Se a tensão bilateral escalar, o risco de proxy conflicts (conflitos por procuração) aumentará, ameaçando países como a Mauritânia ou o Chade.

2. Energia como Arma Geopolítica:
A Argélia é o maior exportador de gás natural para a Europa, posição que usa para isolar Marrocos. Em 2021, cortou o fornecimento via gasoduto Magrebe-Europa, obrigando Espanha e Portugal a negociarem diretamente com a Argélia. Esta politização da energia prejudica não só Marrocos, mas a própria Europa, que, na crise pós-Ucrânia, precisa de diversificar fontes. Para África, é um precedente perigoso: recursos naturais devem ser instrumentos de desenvolvimento, não de conflito.

3. A Falência da Mediação Internacional:
A UE e os EUA preferem uma abordagem cautelosa, priorizando relações bilaterais (Espanha apoia Marrocos; Itália depende do gás argelino). A UA, por sua vez, carece de mecanismos eficazes para mediar o conflito. Esta inação encoraja a escalada, enquanto organizações como a CEDEAO assistem, impotentes, à fragmentação do seu flanco norte.

O Silêncio dos Países Africanos: Um Erro Estratégico
Angola, como membro influente da UA e defensora histórica da autodeterminação dos povos, tem a obrigação de se posicionar. O silêncio dos Estados africanos perante esta crise só beneficia potências externas que veem o continente como um campo de batalha para seus interesses. A China, por exemplo, fortalece laços com ambos os lados (investindo em portos marroquinos e minas argelinas), enquanto a Rússia aproveita para vender armas a regimes instáveis no Sahel.

A solidariedade africana não pode ser seletiva. Se a UA condena a invasão russa da Ucrânia, mas hesita em mediar conflitos entre seus próprios membros, perde credibilidade. A crise argelino-marroquina é um teste à capacidade africana de resolver suas próprias disputas – sem depender de antigas metrópoles ou de novas potências coloniais disfarçadas de investidores.

Conclusão: Por um Magrebe para os Africanos
A expulsão de um diplomata é, em si, um ato simbólico. Mas símbolos importam: revelam que Argélia e Marrocos preferem a linguagem da força à da diplomacia. Enquanto isso, a população cabília (berbere) segue marginalizada, os saarauís vivem em campos de refugiados há décadas, e os jovens magrebinos fogem para Europa em busca de dignidade.

Angola, que conhece o custo de guerras prolongadas, deve usar sua voz para exigir diálogo. A UA precisa urgentemente de uma cimeira dedicada ao Magrebe, com pressionamento para reabertura de fronteiras e retomada de projetos económicos conjuntos. O comércio, não as armas, deve definir o futuro da região. Afinal, como lembra um provérbio cabília: “A chuva que cai num telhado não molha apenas uma casa”. A discórdia no Magrebe já está a inundar toda a África.

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