Opinião
Angola: um Estado, muitos donos
A Administração Pública angolana enfrenta desafios estruturais e culturais que comprometem a eficiência, a transparência e a moralidade na gestão dos bens do Estado. Um dos maiores entraves à modernização do país é a persistência do modelo patrimonialista, no qual muitos gestores públicos confundem deliberadamente o que é do Estado com o que lhes pertence.
A apropriação indevida de viaturas, imóveis e fundos públicos não é apenas um reflexo da impunidade, mas também de uma mentalidade enraizada que vê os recursos estatais como extensão do património pessoal dos administradores. Esta prática, herança dos tempos coloniais e reforçada por décadas de má governação, desvia recursos essenciais para o desenvolvimento da nação e perpetua um sistema administrativo ineficiente, centralizador e corrupto.
Max Weber (1922) defendeu que a burocracia deveria ser um modelo racional de organização, baseado na impessoalidade e na meritocracia. No entanto, em Angola, a burocracia frequentemente serve como instrumento de perpetuação de privilégios, distanciando-se do seu verdadeiro propósito: servir o cidadão. Este artigo analisa o impacto do patrimonialismo na Administração Pública angolana e propõe estratégias para transformar esta realidade, com base em teorias modernas de gestão e governação.
2. O Modelo Patrimonialista e a Apropriação dos Recursos Públicos
O patrimonialismo, conceito amplamente estudado por Raymundo Faoro (1958) na obra Os Donos do Poder, caracteriza-se pela fusão entre os interesses do Estado e os interesses privados dos seus administradores. Em Angola, essa prática manifesta-se de diversas formas, entre as quais:
2.1 Uso indevido de viaturas do Estado
É comum ver viaturas públicas a serem usadas para fins privados, transportando familiares para actividades pessoais, deslocações turísticas ou até para negócios particulares. Em muitos casos, estas viaturas desaparecem dos registos estatais assim que os funcionários deixam os cargos.
2.2 Ocupação irregular de imóveis públicos
Edifícios governamentais e residências destinadas a funcionários em serviço são frequentemente apropriados por ex-dirigentes, seus familiares e até terceiros, sem qualquer pagamento ou processo legal de concessão. Esta prática agrava o défice habitacional para servidores em exercício e aumenta os custos da administração pública.
2.3 Desvios e uso arbitrário de fundos públicos
A manipulação de fundos públicos para fins privados ou partidários é uma realidade persistente. Orçamentos são geridos com opacidade, sem prestação de contas e sem fiscalização eficaz. Muitas vezes, o dinheiro destinado a infra-estruturas, educação e saúde acaba nas contas bancárias de particulares.
O impacto deste modelo é devastador: desvia recursos que deveriam ser aplicados em sectores essenciais e perpetua um ciclo de clientelismo e impunidade, onde os cargos públicos se transformam em instrumentos de enriquecimento pessoal, em vez de espaços de serviço à nação.
3. A Cultura Burocrática e a Ineficiência Administrativa
A burocracia deveria garantir a ordem e a eficiência na Administração Pública. No entanto, como descreveu Robert Merton (1940), quando mal estruturada, pode tornar-se um entrave ao progresso.
Em Angola, os principais problemas decorrentes da burocracia disfuncional incluem:
Excesso de formalismos e lentidão nos processos administrativos para dificultar o acesso dos cidadãos aos serviços públicos;
Falta de inovação e resistência à modernização tecnológica, mantendo sistemas ultrapassados e abrir brechas para a corrupção;
Nepotismo e ausência de meritocracia, onde cargos são ocupados por indicação política ou familiar, em vez de competência.
Esta rigidez administrativa favorece práticas patrimonialistas para permitir que os mesmos grupos políticos e económicos mantenham o controlo do Estado sem prestar contas à sociedade.
4. Estratégias para Superar o Patrimonialismo e Modernizar a Gestão Pública
Para romper com este ciclo vicioso, é necessária uma reforma estrutural que garanta maior transparência, responsabilização e eficiência no serviço público. Algumas estratégias eficazes incluem:
4.1 Implementação de Sistemas de Fiscalização Rigorosos
O Estado deve criar mecanismos eficazes para monitorar e fiscalizar o uso dos bens públicos. Algumas medidas incluem:
Geolocalização das viaturas oficiais para garantir que sejam usadas apenas para fins institucionais;
Registo digital de imóveis do Estado para impedir ocupações ilegais;
Fortalecimento dos órgãos de fiscalização, como o Tribunal de Contas e a Inspecção Geral da Administração do Estado para garantir auditorias regulares.
4.2 Reforma Administrativa e Profissionalização do Serviço Público
Os cargos públicos devem ser ocupados por profissionais qualificados, e não por apadrinhados políticos. Para isso, é essencial:
Concursos públicos transparentes e meritocráticos;
Capacitação contínua dos servidores públicos;
Cultura de prestação de contas, com relatórios regulares sobre a utilização dos recursos do Estado.
4.3 Criminalização e Penalização Efectiva da Má Gestão Pública
A apropriação indevida de bens públicos deve ser tratada como crime grave, através de:
Endurecimento das leis de responsabilização administrativa, prevendo penas severas para desvios de recursos públicos;
Criação de tribunais especializados em crimes de corrupção;
Protecção e incentivo às denúncias de irregularidades.
4.4 Digitalização e Modernização dos Serviços Públicos
A implementação da governação electrónica pode reduzir significativamente a corrupção e aumentar a transparência. Algumas acções incluem:
Plataformas online para prestação de contas para permitir que qualquer cidadão acompanhe os gastos públicos em tempo real;
Pagamentos electrónicos para eliminar intermediários e reduzir manipulações financeiras;
Sistema digital de gestão de activos do Estado para evitar desvios e perdas.
4.5 Fortalecimento da Sociedade Civil e da Imprensa
A transparência só é possível quando há pressão social para que o Estado funcione de maneira ética e eficiente. Permitir que jornalistas e organizações da sociedade civil acompanhem a gestão pública ajuda a expor abusos e criar um ambiente menos permissivo à corrupção.
Para concluir é necessário referir que o patrimonialismo e a cultura burocrática ineficiente continuam a ser grandes obstáculos ao desenvolvimento de Angola. Enquanto a administração pública não for reformada para priorizar o interesse colectivo em detrimento do interesse individual dos gestores, o país continuará a enfrentar graves problemas estruturais.
A mudança exige acção governamental, pressão social e um compromisso sério com a transparência e a responsabilização. Apenas com um Estado moderno, eficiente e orientado para resultados será possível garantir uma administração pública verdadeiramente comprometida com o progresso da nação e o bem-estar dos cidadãos.
É hora de separar definitivamente o público do privado e fazer com que a célebre frase de Luís XIV, “O Estado sou eu”, deixe de ser a realidade da governação em Angola.