Opinião
Angola: entre a impunidade e o medo – A crise da permanência política
Ao longo das últimas décadas, a realidade política de Angola tem sido marcada por uma contradição inquietante: os dirigentes permanecem no poder mesmo quando falham em cumprir os compromissos que justificaram as suas nomeações. Este fenómeno, enraizado na história e na cultura política do país, impõe uma reflexão crítica acerca dos mecanismos institucionais e da lógica interna do partido dominante. Em vez de se abdicar voluntariamente quando se comprovam desvios – quer se trate de corrupção, má gestão dos recursos ou ineficiência na prestação de serviços públicos –, estes dirigentes parecem agarrar-se a redes de influência que os protegem, mesmo à custa do desenvolvimento nacional.
Historicamente, Angola emergiu da luta pela independência com a esperança de construir uma nação unida e próspera. No entanto, o regime instaurado no período pós-independência caracterizou-se pela centralização extrema do poder e pelo clientelismo, criando um ambiente em que admitir erros e responsabilizar-se pelos próprios fracassos passou a ser visto como sinal de fraqueza. Assim, o medo de represálias – seja por parte do partido ou de um sistema que reprime a dissidência – tornou-se um poderoso inibidor da exoneração voluntária. As estruturas políticas herdadas de um passado de autoritarismo perpetuam, hoje, uma cultura de impunidade que inviabiliza a renovação democrática e a implementação de políticas eficazes.
No cenário actual, os efeitos desta dinâmica manifestam-se em todos os quadrantes da administração pública. A situação é particularmente grave na educação, onde mais de quatro milhões de crianças estão fora do sistema, reflexo direto da negligência estatal e da falha na implementação de políticas inclusivas. De igual modo, a segurança urbana e alimentar encontra-se seriamente comprometida, enquanto a expansão da rede energética avança de forma morosa e o acesso à água potável permanece insuficiente para as necessidades básicas da população. A precariedade na rede de comunicação, os entraves no transporte e os problemas crónicos no sector agrícola constituem ainda outros sintomas de uma má gestão generalizada. Acresce o facto de os deputados, ao exigirem audições na Assembleia Nacional para esclarecer medidas controversas ou incumprimentos, se depararem com uma recusa sistemática por parte dos governantes, que parecem preferir o silêncio à prestação de contas.
Comparativamente, nações que conseguiram instaurar mecanismos de transparência e alternância política demonstram que a responsabilização dos líderes é um elemento imprescindível para o progresso e a modernização do Estado. Em vários países, a pressão da sociedade civil, o trabalho de organismos de controlo autónomos e a existência de instituições democráticas vigorosas obrigam os governantes a responderem pelos seus atos – mesmo que, por vezes, a transição de poder seja dolorosa. Em Angola, contudo, a manutenção do status quo revela um receio profundo das consequências de uma mudança, o que, na prática, consolida um sistema que privilegia a perpetuação dos mesmos atores políticos e o reforço de práticas clientelistas.
Face a este cenário, impõe-se a necessidade urgente de repensar o modelo de governação vigente. Propõe-se a criação e o fortalecimento de instituições independentes que possam fiscalizar, com rigor, a ação governamental; a implementação de mecanismos de transparência que tornem públicos os fluxos de recursos e decisões; bem como a promoção de uma cultura de responsabilização política, onde o debate e a crítica construtiva sejam valorizados. A descentralização do poder e o incentivo a lideranças locais emergentes podem, ainda, contribuir para uma gestão mais próxima e sensível às reais necessidades da população.
A participação activa da sociedade civil – por meio de denúncias, controlo social e exigência de respostas – revela-se também um pilar fundamental para romper com a lógica de impunidade que até hoje tem prejudicado o desenvolvimento sustentável e a justiça social.
Em suma, a recusa dos dirigentes angolanos em se afastarem dos seus cargos, mesmo quando os desvios e a má gestão se tornam evidentes, é sintoma de um sistema profundamente enraizado numa cultura de medo e de impunidade. Este modelo, longe de ser viável face aos desafios do século XXI, acarreta consequências devastadoras em sectores essenciais como a educação, a segurança, a energia, a água, as comunicações, o transporte e a agricultura. A única via para uma transformação real reside na renovação política – alicerçada na transparência, na responsabilização e na participação cidadã – que permita a construção de um Estado verdadeiramente a serviço do povo, onde cada política pública seja concebida para promover o desenvolvimento inclusivo e a justiça social, garantindo assim um futuro mais digno e próspero para todos os angolanos.