Crónica
Ai se o morto ressuscitasse
Há dias em que a morte parece moda. Mesmo sem querer, ouvimos choros por todo lado, como se o país respirasse luto e suspirasse tristeza. Os cemitérios enchem-se, os cortejos multiplicam-se, e nós, vivos, vamos caminhando por entre covas abertas, lembrando silenciosamente que cada um de nós é apenas um cadáver adiado.
Algumas partidas são da vontade do Ngana, que chama os seus para o conforto da Sua Glória. Outras, porém, são obra de homens e mulheres cujo coração se perdeu na inveja, na ganância e na crueldade. Tirar a vida do outro tornou-se, para muitos, tão banal quanto trocar de camisa. E as crianças ficam atiradas à sorte, neste deserto chamado VIDA, à procura de água, comida e afeto.
Nas famílias, multiplicam-se tchiliangus e tchilunlus, sempre ocupados a espalhar maldade em vez de cura. E entre tantos gestos de violência, fica a pergunta que inquieta: onde está o valor da vida?
Por que é que somos tão cruéis?
Por que um pobre mata outro pobre para permanecer pobre?
Por que um rico mata o pobre?
E por que um rico elimina outro rico?
A explicação talvez esteja no princípio, lá atrás, onde começou o desvio do padrão moral que sustentava a convivência.
Lembro-me das histórias do velho Camuele, no Lichumbo, e do velho Francisco Mutu, no Waba. Ambos já partiram, promovidos pelas circunstâncias duras da vida. Mas narravam tempos em que visitar um doente era acto sagrado. Levava-se qualquer coisa — um pouco de dinheiro, bebida, sumo de limão — não por ostentação, mas para aliviar o enfermo e reconfortar a família.
Era assim que o vizinho se tornava família, e a família era extensão do bairro.
Hoje, porém, a prudência virou medo e o medo virou indiferença. A sociedade ensina que não se oferece nada ao doente, para não ser mal interpretado. E, assim, vamos perdendo a essência do cuidado.
Mesmo assim, alguns continuam firmes na bondade. As suas obras são vistas por todos, até pelos que só aparecem no funeral — esses que, para serem notados, chegam ao ponto de carregar a urna como se fosse troféu.
E no meio do espectáculo, lá estão os coveiros em risos e algazarra, como se enterrar alguém fosse brincadeira.
O respeito evapora-se.
A dor vira cenário.
O morto torna-se desculpa para desfile.
Mesmo nos locais de trabalho, colegas que nunca dispõem de cinco minutos para visitar um doente aparecem depois a discursar elogios falsos. Professam que o falecido era exemplar, amigo de todos. Nosso irmão, dizem. Mas a consciência sabe a verdade: nunca estiveram lá.
Há também os irmãos que não se visitam, pastores que não passam das portas da igreja, directores que esquecem funcionários enfermos durante anos.
Mas basta o doente morrer para as lágrimas aparecerem: dramatismo, discursos, música, vigílias… tudo numa noite só, tudo encenado.
E se, num instante impossível, o morto ressuscitasse, o que diria?
Veria o pastor que nunca atendeu as suas chamadas?
O colega que o perseguia no serviço?
O tio que recusou levá-lo ao hospital quando implorou:
“Leva-me ao Hospital Central… o corpo dói.”
Encontrá-los-ia ali, de óculos pretos e roupas de gala, exibindo carros, tissage, sapatos brilhantes e uma tristeza teatral.
Diria talvez:
“Wali sinhula, wali lila…”
E completaria em quimbundo:
“Ndji lila a ndjitunda o mañina.”
A verdade é simples e dura:
faz o bem enquanto é tempo.
Não guardes o dinheiro da urna, quando podia fazer diferença na vida do doente.
Não esperes que o vizinho morra para aparecer com lágrimas tardias.
Não fujas do pedido que alguém te faz no seu momento mais fraco.
A morte, essa senhora severa, um dia também morrerá.
Até lá, cada um de nós carrega o seu encontro marcado.
E quando o barco voltar para nos levar, ficará a pergunta:
Se eu ressuscitasse, quem encontraria à minha volta?
E que verdade veria nos seus olhos?
Por: Nelito Yambi & Denílson Duro