Opinião
A retórica da resistência: entre o discurso e a realidade na RDC
A recente comunicação do Presidente Félix Tshisekedi, transmitida em directo há uma hora, reflecte um momento crítico da trajectória política e securitária da República Democrática do Congo (RDC). O tom inflamado e nacionalista do discurso visou mobilizar a opinião pública interna e sensibilizar a comunidade internacional para a escalada da violência nas províncias do Norte do Kivu, Sul e Ituri. No entanto, uma análise desapaixonada e realista impõe questionamentos sobre a eficácia das estratégias enunciadas e as reais implicações da actual retórica presidencial.
O presidente denunciou, de forma categórica, a ingerência directa das Forças de Defesa do Ruanda no apoio ao grupo armado M23, classificando suas acções como “terroristas” e apontando para uma violação aberta da soberania congolesa. Esta narrativa não é inédita. O governo congolês tem reiterado, ao longo dos últimos anos, a sua acusação contra Kigali, atribuindo-lhe a responsabilidade pelo avanço do M23 e pelo contínuo desestabilizar da região leste do país. A diferença agora é o tom de desafio explícito, que flerta com uma escalada de retaliação militar directa, numa conjuntura que já se encontra altamente volátil.
Se a resposta do Estado congolês consiste numa resistência armada e na intensificação da mobilização das suas Forças Armadas (FARDC), o país enfrenta limitações estruturais e operacionais que colocam em causa a viabilidade desta estratégia. Os desafios logísticos, a corrupção dentro das fileiras militares e a insuficiência de um apoio estratégico e coordenado com parceiros internacionais fragilizam a operacionalidade da resposta militar. A nomeação do General-Major Évariste Somo Kakule como governador militar do Kivu do Norte traduz um reforço da centralização do poder militar, mas não assegura, por si só, uma reviravolta no campo de batalha.
O presidente também enfatizou a via diplomática, referindo as iniciativas no Conselho de Segurança das Nações Unidas e no processo de paz de Luanda. No entanto, a permanência da RDC no quadro negocial tem sido paradoxal. Ao mesmo tempo que reafirma o compromisso com soluções diplomáticas, Tshisekedi recorre a uma retórica de afrontamento contra a passividade da comunidade internacional e das instituições regionais, questionando a efetividade dos mecanismos existentes. Esta dualidade estratégica sugere um impasse nas opções da RDC, que parece presa entre a necessidade de acção unilateral e a frustração com a insuficiência das respostas multilaterais.
Por outro lado, a convocação da população para a “resistência” e para uma mobilização massiva, incluindo a integração da juventude nas forças armadas, levanta preocupações profundas sobre o potencial agravamento da crise humanitária e da militarização da sociedade congolesa. Ao apelar à coesão nacional contra uma ameaça externa, Tshisekedi reforça um sentimento de unidade que, no entanto, não pode obscurecer as tensões políticas internas e a crise de legitimidade que atravessa o seu governo. Num país onde diferentes grupos armados disputam territórios e recursos, a questão que se impõe é até que ponto uma resposta centrada na mobilização militar não agrava a fragmentação social e alimenta uma espiral de violência prolongada?
Outro ponto crucial do discurso foi a interpelação directa à União Africana e à comunidade internacional sobre a impunidade do Ruanda. O líder congolês apresentou a inação global como uma “complicidade passiva” perante as agressões sofridas pela RDC. Embora este argumento encontre eco na insatisfação popular, especialmente entre os deslocados e vítimas da violência, a realidade geopolítica exige um cálculo estratégico mais pragmático. Ruanda mantém uma posição diplomática forte, com aliados estratégicos dentro e fora do continente, e uma narrativa que contrapõe as acusações congolesas com alegações de insegurança na sua própria fronteira. Um eventual alastramento da escalada militar entre os dois países poderia empurrar a região dos Grandes Lagos para um cenário de guerra interestatal de consequências incalculáveis.
O discurso de Tshisekedi cumpriu um papel político interno claro: reforçar a imagem de liderança e projectar uma figura de firmeza no plano securitário. No entanto, a real capacidade de alterar o curso dos acontecimentos reside menos na exortação à resistência e mais na eficácia da coordenação política e militar. A instrumentalização da retórica patriótica, se não for acompanhada de medidas concretas e sustentáveis, corre o risco de transformar-se em combustível para um conflito ainda mais descontrolado, perpetuando o ciclo de insegurança que há décadas marca o leste da RDC.
Se o compromisso com a soberania nacional for de facto inegociável, a sua defesa deve ocorrer tanto no terreno militar quanto no campo da governação eficiente e das reformas institucionais. É imperativo que a RDC saia da armadilha da resposta reactiva e construa uma abordagem mais consistente para enfrentar as raízes do conflito, incluindo o tráfico de recursos minerais, a presença de milícias transnacionais e a ausência de um Estado forte nas províncias em crise.
Tshisekedi deixou claro que o país não se renderá. A verdadeira questão, no entanto, é se a RDC conseguirá construir uma resposta nacional e internacional que transcenda o discurso de resistência e produza, de facto, um caminho sustentável para a paz.