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“A morte de uma zungueira traz consigo uma série de problemas”

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Na semana finda, o Governo apresentou uma brochura do guia das recomendações da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, na sigla inglesa), num ano em que a mulher está representada em 30,5% no parlamento angolano e em 38% no aparelho do Estado.

Contudo, os níveis de violência doméstica assumiram índices nunca antes vistos, muito agravado pela pandemia de covid-19. Para a jurista Margareth  Jacinto, a mulher angolana conheceu avanços em diferentes níveis, nos últimos tempos, porém, ainda há muito a se conquistar.

Directora da Fundação Doce Coração, que há quatro anos dedica-se a trabalhos sociais, Margareth Jacinto diz, em entrevista ao Correio da Kianda, que “o momento que vivemos é delicado” e que é necessário aprimorar os mecanismos de protecção à mulher, sobretudo daquelas com menor rendimento:

“Precisamos pensar e materializar a alfabetização das mulheres “zungueiras”. Elas são um grande motor da nossa  sociedade. É preciso investir nela com propósito dela também vir a crescer a longo prazo. Pelo menos pensar que todas elas possam estar munidas desta ferramenta tão indispensável: ler e escrever”.

Continue a ler abaixo:

O Governo angolano apresentou uma brochura do guia das recomendações da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, na sigla inglesa). De que forma este documento auxilia na melhoria de condições das mulheres e meninas no país?

Considero que o material jurídico, como é o caso de legislações são documentos que servem sempre para reforçar, dar suporte à determinada situação. Porém, este suporte legal só terá ênfase quando o que estiver no papel poder ser relevante na vida das pessoas. Quando se reflectir directamente nas situações concretas destas mesmas mulheres. Senão, serão apenas disposições legais.

Acredita que a capacitação e formação da mulher, a sua inserção social e nos diferentes níveis de tomada de decisão em Angola evoluiu nos últimos anos?

Devo dizer que se tem estado a evoluir, aliás é uma meta que o Governo pretende alcançar, mas considero que ainda há um longo caminho a percorrer.

A implementação da Política Nacional para Igualdade e Equidade de Género tem-se feito sentir no quotidiano das angolanas?

Em meu entender já começamos a sentir os seus efeitos na medida em que há mais mulheres na nossa sociedade desempenhando variadíssimas funções.

Em termos de representatividade, a mulher está representada em 30,5% no parlamento angolano e em 38% no aparelho do Estado. Inclusive, o congresso do MPLA terá, pela primeira vez, a obrigatoriedade de 50% dos delegados serem do género feminino. Pode avaliar o impacto disto para a sociedade?

Tendo em vista o próximo congresso do MPLA, o presidente João Lourenço defende até a metade das mulheres como representação no parlamento. Nesta senda, isto vai, sem dúvida, catapultar o papel da mulher e colocá-la em destaque. Ela torna-se mais visível e aumenta a sua responsabilidade social, na medida em que lhe é requerida mais desenvoltura intelectual, social, capaz  de estar à altura dos desenvolvimentos do país.

Os relatos de casos de violência contra a mulher têm sido recorrentes neste período de isolamento social devido a pandemia de covid-19. Acha que essas mulheres já eram vítimas de violência, mas não tinham coragem de denunciar, ou acredita que há um aumento de casos nestes tempos?

Bom, aqui há duas questões: estes relatos já se faziam ouvir por inúmeras razões. Com o surgimento desta pandemia, a situação tende a agudizar-se.  O momento que vivemos é delicado. Ele interfere em todas os nossos sentidos: físico, psíquico, emocional e espiritual. Então, este será ainda mais um factor para servir de incremento à própria situação.

Necessário será haver linhas de apoio, quer telefónico, quer outro que possam tornar acções concretas e enérgicas. Sentir que alguém a pode socorrer, a ela e aos filhos quando mais precisa. Devemos pensar em situações reais. Países como o Brasil, têm a Lei Maria da Penha, que funciona, só para dar um exemplo. Nos centros da nossa realidade podemos arranjar também mecanismos de defesa para estas mulheres. Recursos electrónicos, quem sabe. Mas é urgente mudar este quadro.

Trabalho social

Como grandes provedoras dos lares angolanos, as “zungueiras” estão extremamente vulneráveis ao novo coronavírus, pois precisam obrigatoriamente expor-se para garantir o sustento de seus lares. Acha que o Governo poderia ter alguma política que amenize tal situação?

O coronavírus apanhou toda a gente de surpresa. A situação da “zungueira” não é diferente. Contudo, concordo  que elas devam, sim, beneficiar de uma política de protecção social e financeira que as resguarde desta situação. Podemos elencar algumas medidas que o Estado poderia providenciar, nomeadamente, a criação de refeitórios  sociais, a atribuição de um valor monetário para que ela possa satisfazer as suas necessidades, nesta altura da pandemia. Nós evitaremos a exposição  ao risco. Porque considero que a morte de uma “zungueira” traz consigo uma série de problemas em bola de neve. Quem cuidará das crianças? Etc.

Trabalho doméstico, estresse, dupla jornada. A pandemia de covid-19 trouxe para o debate os sacrifícios que uma mulher precisa fazer para manter a família e o trabalho. Os homens angolanos já auxiliam nas tarefas domésticas ou isso ainda é um tabu?

Os homens angolanos têm tentado inverter este quadro. Mas acredito que há um longo caminho a percorrer. Nós erramos na base. É preciso corrigir isto. Desde a infância, o rapaz tem de saber que ele é partícipe de todas as actividades à sua volta. Temos errado muito neste quesito. O homem deve perceber que é parte do problema e da situação. O homem é co-adjuvante da mulher em todas as esferas.

Pensa que actualmente a mulher angolana está mais propensa a denunciar abusos nos lares?

Penso que sim. Ela deixou o preconceito e tende a denunciar os casos de violência doméstica. As que ainda não fazem, há toda uma necessidade de trabalhar nas mentes. Fazer uma desconstrução  de tudo o que ficou de errado no pensamento. Essas, normalmente, são mulheres com baixa auto-estima, depressões profundas, merecem todo nosso apoio.

O que faz com que muitas mulheres se calem diante de actos violentos por parte de seus familiares?

Bom, penso que primeiro há a situação de vergonha perante os familiares; porque ainda temos relatos de familiares ou de pais que usam a célebre frase “aguenta, é teu marido”. Claro está que com este tipo de discurso, a pessoa sente-se desencorajada a tomar decisões contrárias. Depois há o problema do estigma: “vou ser falada, como as pessoas vão olhar para mim”. É uma situação muito complexa, traz consigo uma situação tao difícil de enfrentar que a pessoa não sabe por onde começar.

Acredita que há uma tolerância para os diversos tipos de violência?

Infelizmente, acredito que sim. A violência pode ser não só física como também verbal e, por consequência, psicológica. Nós ainda temos casos de violência verbal que pensamos que podem ser tolerados porque estes não são visíveis. Mas não deixa de ser um tipo de agressão também.

É preciso percebermos que na nossa sociedade o que não é visível  pode não ser perceptível. Precisamos todos de crescer neste capítulo e mudar as nossas consciências porque a violência contra a mulher e o menino tem crescido a níveis galopantes.

O argumento de muitas mulheres para não deixarem uma relação abusiva são os filhos. Crescer num lar não saudável não traria maior dano para as crianças?

Este argumento da não separação invocando o factor “filhos” é tão mau quanto a própria situação. Um lar de violência contra a mãe ou as próprias crianças é mais nocivo que uma separação, uma vez que a criança precisa de paz, amor, carinho e compreensão. É preciso perceber que o lar é o nosso refúgio. Saídos da escola ou do trabalho, a pessoa precisa encontrar um lugar de acolhimento saudável, acolhedor, pacífico, transmissor de tudo o que a atmosfera external não possa trazer ou oferecer.

Pensa que excepto quando há violência física, a mulher tem dificuldades de perceber que está a ser vítima de algum tipo de violência? Quais seriam as diferentes formas de violência as quais a mulher pode estar submetida? Quais mais comuns em Angola e por quê?

Bem, nós ainda temos muita falta de informação, formação nas diversas camadas da nossa sociedade. E, muitas vezes, só nos apercebemos de situações quando elas são visíveis, como o caso da violência doméstica, como referenciei anteriormente. Mas há outros tipos de violência, como a verbal, a física, a psicológica, a sexual, a social, tudo isto são formas de violência também.  A mais comum em Angola é, sem dúvida, a violência doméstica. Muitas mulheres são maltratadas e elas se quer se apercebem que estão a ser. Deve-se também ao baixo nível de escolaridade, o meio social, enfim, muitos factores contribuem para tal.

Os abusos contra menores também têm sido recorrentes. Que conselho daria para uma menina que encontra-se nesta situação?

Os  abusos a menores têm sido recorrentes e isto acontece no próprio seio familiar, muitas vezes. É preciso ensinar as crianças, quer sejam elas meninas ou rapazes, que ninguém deve tocar nos seus órgãos genitais, mesmo sendo pessoas próximas. E quando tal aconteça, a criança deve reportá-la à pessoa adulta com a qual se sente mais a vontade.

Tem um projecto de prevenção da gravidez precoce. A que se deve o aumento dos números de meninas que engravidam precocemente no país?

Precisamos compreender  que a criança deve ser preparada. Isto inclui formação formal, acompanhamento familiar, etc. Há muita falta de informação; há falta de educação sexual nas escolas e não só. É preciso falar-se mais sobre o assunto. Trabalhar-se nele sem tabus, de forma clara, objectiva e direccioanada. Mostrar as meninas as alternativas que há para que ela possa envitar esta situação. Como usar os contraceptivos, por exemplo. Que tipo usar,  prevenção de DST. Enfim, uma série de assuntos a ser abordados. A importância de não ter relações sexuais antes do corpo estar preparado.  Enfim, é um assunto que todo mundo sabe e ninguém fala.

É comum que nas casas em Luanda tenha sempre meninas, por vezes trazidas do interior do país, que ficam responsáveis pelas tarefas de casa. Algumas são bem tratadas e colocadas nas escolas, outras, por vezes são vítimas de todo tipo de abuso físico e psicológico. Pensa que o Governo poderia criar um mecanismo de protecção mais eficaz para essas meninas?

Não é uma tarefa muito fácil, na medida que elas passam ao lado até dos próprios familiares, que acreditam que fizeram o melhor para aquela criança. Penso que devem ser os próprios familiares da menina a terem uma relação mais estreita ou com a família ou com a menina, para saberem de facto em que condições a mesma vive. Acredito ser mais realístico desta forma.  

De uma forma geral, como avalia a mulher angolana de hoje comparada com as mulheres de outros países?

A mulher angolana de hoje é, sem dúvida, uma mulher mais preparada. Esta tem vindo a fazer uma trajectória de superação. É hoje uma mulher que tenta estar a um nível social, intelectual, financeiro mais elevado. Nota-se uma tentativa de paridade com o homem na sociedade. Testemunha-se também uma melhoria financeira em relação a remuneração laboral. Deve dizer-se que tem havido um progresso, mas continuamos a percorrer o caminho. Precisamos pensar e materializar a alfabetização das mulheres “zungueiras”. Elas são um grande motor da nossa  sociedade. É preciso investir nela com propósito dela também vir a crescer a longo prazo. Pelo menos pensar que todas elas possam estar munidas desta ferramenta tão indispensável: ler e escrever. Bem-haja a todas as mulheres!

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