Análise
A morte das empresas em Angola é o funeral da justiça laboral
1. A Retórica Fria da Morte Corporativa
Quando uma empresa angolana encerra as suas actividades, seja por insolvência, má gestão ou fusão silenciosa, raramente se escuta o grito humano da perda. O que se impõe é a retórica técnica, o discurso dos relatórios e balanços: fala-se em reestruturação financeira, racionalização de custos ou reorganização estratégica.
Este léxico asséptico, importado de manuais de gestão, mascara uma realidade dolorosa: o encerramento de uma empresa é também o colapso de projectos de vida, a dissolução de comunidades laborais e a perda de identidade de milhares de trabalhadores.
O problema não está apenas na linguagem, mas no modo como ela molda a percepção da sociedade. Ao falar de “sinergias” e “ajustes de mercado”, apaga-se o drama humano por detrás dos números, reduzindo pessoas a estatísticas.
2. A Superação como Imposição Cultural
Em Angola, como em muitos outros contextos, a narrativa dominante é a da superação obrigatória. Espera-se que os trabalhadores afectados aceitem rapidamente a perda, recomecem as suas vidas e voltem a acreditar no “mercado”.
Este imperativo cultural inspira-se em modelos psicológicos como os de Elisabeth Kübler-Ross, que descrevem fases do luto: da negação à aceitação. Estes esquemas são convenientes para gestores e políticos porque simplificam o sofrimento e oferecem a ilusão de que o luto é linear, previsível e superável em pouco tempo.
No entanto, como alerta Peter Marris (1974), esta perspectiva funcionalista transforma o luto em falha pessoal, patologizando quem não consegue “seguir em frente” no ritmo imposto pela lógica empresarial.
3. A Morte de Empresas em Angola: Mais do que Economia
No nosso país, exemplos não faltam. O colapso do BESA (Banco Espírito Santo Angola) deixou milhares de trabalhadores, clientes e investidores em estado de choque, não apenas pela perda financeira, mas pela quebra da confiança num sistema que parecia sólido.
As indústrias têxteis de Benguela, Cuanza-Norte e Luanda, outrora promessas de modernização e industrialização, fecharam silenciosamente as portas, deixando cidades inteiras sem postos de trabalho e sem alternativas.
O sector da comunicação social também não escapou: jornais históricos, rádios comunitárias e até televisões privadas encerraram actividades, muitas vezes sem respeitar os direitos laborais dos profissionais.
Cada uma destas mortes organizacionais não é apenas um “evento económico”. É uma ruptura social, um trauma colectivo e uma ferida cultural que continua aberta.
4. O Luto como Experiência Cultural
O luto organizacional não deve ser visto como mero processo administrativo, mas como experiência cultural e existencial. Em sociedades como a angolana, onde o trabalho é muitas vezes a única fonte de subsistência e dignidade, a perda de um emprego equivale à perda de identidade social.
A teoria dos laços permanentes ajuda a compreender esta dimensão: não se trata de esquecer o passado, mas de integrá-lo na construção do presente. Quando um trabalhador recorda a empresa onde dedicou décadas de vida, não está “preso ao passado”, mas a dar continuidade a uma identidade construída no trabalho.
5. O Potencial Político do Luto
A história mundial mostra como o luto pode transformar-se em resistência. As Mães da Praça de Maio, na Argentina, recusaram a imposição do silêncio sobre os desaparecidos da ditadura. O seu luto tornou-se movimento político e força de transformação social.
Em Angola, trabalhadores despedidos têm protestado junto ao Ministério da Administração Pública, Trabalho e Segurança Social, exigindo salários em atraso e indemnizações. Estes protestos, embora muitas vezes silenciados ou marginalizados, são expressões claras de que o luto colectivo pode converter-se em exigência de dignidade e justiça social.
6. O Silenciamento do Sofrimento
Contudo, a prática dominante em Angola continua a ser a do silenciamento. Os processos de falência ou encerramento dão prioridade aos activos, às dívidas e aos credores. Os trabalhadores aparecem no fim da lista, muitas vezes com indemnizações reduzidas ou pagas com anos de atraso.
Em nome da “estabilidade económica”, pede-se paciência, compreensão e fé no futuro. Mas raramente se reconhece a dimensão simbólica e humana da perda. Como observa Frank Furedi (2004), esta abordagem individualiza o sofrimento, transformando-o em problema psicológico a ser resolvido com terapias, enquanto a responsabilidade colectiva e estrutural é escamoteada.
7. A Necessidade de Rituais de Memória
Uma empresa que morre deixa rastos para além da economia: deixa memórias colectivas, comunidades desestruturadas e identidades partidas. Por isso, não basta o encerramento jurídico. É necessário criar rituais de memória que reconheçam a importância do passado.
Em algumas culturas, como a japonesa, há rituais para honrar objectos, casas ou empresas que chegam ao fim. Esse reconhecimento colectivo não é fraqueza, mas forma de dignidade. Em Angola, poderíamos adoptar práticas semelhantes: memoriais públicos, narrativas históricas, museus do trabalho ou até espaços comunitários que mantenham viva a memória de indústrias, bancos e jornais desaparecidos.
8. A Morte Organizacional e a Crise de Significado
Zygmunt Bauman lembra-nos que “a morte e sua interpretação fazem inevitavelmente parte da vida, são traços essenciais da condição humana”. Ignorar esta dimensão no contexto organizacional é perpetuar uma crise de sentido.
Para Burkard Sievers, só quando aceitarmos a morte como parte natural da vida é que poderemos rejeitar modelos mecanicistas e abraçar compreensões mais humanas do trabalho.
Em Angola, essa aceitação implica reconhecer que a falência de empresas não pode ser vista apenas como falha de gestão, mas como acontecimento que deixa marcas na sociedade e exige responsabilidade colectiva.
9. A Verdadeira Resiliência em Angola
A verdadeira resiliência não está no esquecimento rápido nem na imposição da “superação”. Ela nasce da capacidade de carregar as perdas com dignidade, de transformar a dor em memória e a memória em acção.
Quando uma empresa morre, não devemos reduzir o acontecimento a estatísticas económicas. Devemos perguntar: quem perdeu o quê?, quem ficou para trás? e como podemos honrar essa história?
A morte de uma empresa em Angola não pede pressa, silêncio ou esquecimento. Pede memória, dignidade e justiça, para que a sociedade não continue a repetir os mesmos erros, mas aprenda a reerguer-se sobre os escombros com humanidade.