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“A independência foi um bolo envenenado que os portugueses atiraram para os negros”

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Hoje, o Correio da Kianda lança a primeira de várias entrevistas a volta da história e da situação real do país, com diversas individualidades, para assinalar o mês em que se comemora os 45 anos desde a independência. Neste primeiro trabalho, ouvimos o nacionalista do MPLA, Pacavira Mendes de Carvalho, 68 anos, que se assume como “a reserva moral” do partido.

Mais conhecido como General “Paca”, em entrevista ao nosso jornal, afirma que os angolanos ainda não estavam preparados para receber dos portugueses a independência de Angola.

General “Paca” fala, igualmente, do clima que se vivia em Angola antes da independência nacional, bem como dos factores que, na sua perspectiva, terão contribuído para a falta de estabilidade política e social na vida dos angolanos.

Em relação à Angola do presente, críticas ao presidente João Lourenço não faltaram: “estou com receio porque o país está a caminhar para uma situação complicada… é mesmo no meio dessas brigas dos jovens com a Polícia, onde amanhã pode surgir o grande problema de Angola”.

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Como caracteriza o clima que se vivia em Angola, durante os 14 anos que antecederam à proclamação da independência, isto de 1961 à 1975?

Foi um momento de muito terror em Angola, especialmente para os elementos que se expunham a lutar por igualdade, por um bem-estar social para a população. Isto levou à que a maior parte da população fosse ostracizada e colocada numa situação de silêncio. A repressão era tão grave que nem toda a gente podia “pôr a crista fora”. Era uma máquina tão bem montada que não te dava espaço de penetração nem de intervenção política.

Qual era a posição da juventude na altura? Estava empenhada ou receosa? O general era jovem, nesta altura…

Eu era jovem, mas feliz ou infelizmente também fui vítima do colonialismo. A minha família toda estava conotada com a chamada contra-revolução, que lutava contra o colonialismo. O meu pai, muito cedo, nos meus cinco anos, foi para a cadeia e depois desterrado para o Tarrafal. Por força das circunstâncias, eu tinha uma visão diferente da maioria dos jovens de Angola. É muito bonito ouvir toda gente vir dizer que todos lutaram. É mentira. O colono não dava espaço. Mínimo descuido ias para a cadeia. E se tivesse um nível de conhecimento muito elevado ias para (as cadeias) do Bentiaba, para o Camissongo, te matavam. Os jovens sofriam em silêncio.

Disse que teve uma visão diferente dos outros jovens da época. Que visão era essa que o diferenciava dos demais?

Com um pai preso, desterrado no Tarrafal, com a família a ser perseguida, a malta tinha de fazer tudo para lutar. Nós tínhamos de participar obrigatoriamente. Éramos acossados pelos colonialistas. Veja que quando o meu pai foi para a cadeia, os colonialistas prometeram matar-nos nós os filhos dos terroristas, como chamavam, para não seguirmos o exemplo dos nossos pais. Vivíamos sob constantes ameaças. Para nós, não estava reservado nada de bom, era tudo de mal.

Essas ameaças eram só para aqueles cujos pais estavam presos ou eram para todos os jovens da época?

Eram para os que estavam na linha da frente. Nós estávamos na linha da frente. Qualquer mau entendido por parte deles, ou qualquer acção dos filhos desses ‘terroristas’ era processo sumário directo para os campos, para a prisão. Confinaram a população e criaram um clima de temor, de medo. Muitos dos jovens morreram.

 “Os angolanos não estavam preparados para receber a independência”

A proclamação da Independência, em 1975 veio representar o grande alívio ansiado…

Um grande alívio. Pelo menos deixou de existir toda aquela acção que era realizada pela PIDE (Polícia de Intervenção e Defesa do Estado). Pelo menos deixou de existir toda aquela repressão realizada pelos ocidentais. Os negros começaram a ter uma vida normal, mas também com muita leviandade. Foi um processo bom, mas também mal conduzido. Esses momentos que estamos a viver hoje, resulta da falta de perspectiva futurista do que seria Angola. Nem a FNLA, a UNITA e mesmo o MPLA sabiam o que seria o futuro de Angola. Aquilo foi só a vontade de se ver livre dos colonialistas, mas não tinham perspectivado como seria o futuro de Angola. E então, daquela data à esta parte é só destruição total daquilo que o colono deixou. Angola, a nível de África e mesmo do mundo, no domínio da economia, já tinha atingido níveis muito elevados.

Durante o processo de descolonização, em véspera da proclamação da Independência Nacional houveram alguns acordos entre os três movimentos de libertação, mas que não terão sido respeitados. Esse facto demonstra falta de capacidade de diálogo entre os angolanos?

O processo de transferência de poder foi mal feito. Apanhou muita gente incauta, gente sem perspectiva futurista, em certa medida arrastados por tendências maliciosas porque toda ajuda que realizaram em favor destes movimentos, com certeza que estavam à espera de contra-partida. Não estou a ver um indivíduo que colonizou durante 500 anos, entregar a Independência assim de mãos beijadas e com muito amor e carinho. A independência foi um bolo envenenado, que os portugueses atiraram para os pretos, porque a perspectiva era mesmo continuar, mas de forma diferente, a explorar. O próprio desentendimento entre eles já começou no início da criação do partido, a partir de Leopoldvile. Todos eles giravam em torno do mesmo espaço. O Savimbi esteve e o próprio o MPLA esteve na UPA. Há muita gente que partiu daqui para ir ao MPLA (no Congo) e acabaram por ficar na UPA. Também há gente da UPA que foi para o MPLA, mas em termos perspectivos, nenhum deles tinha maturidade e visão bastante para ver o Angola após independência. Nem Agostinho Neto, nem ninguém tinha ideias sobre o futuro.

Está a dizer que os angolanos não estavam preparados para receber o país…

Na minha forma de ver os angolanos não estavam preparados para receber a independência. O país não tinha quadros. Tinha poucos elementos pensantes, a maior parte dos elementos pensantes eram brancos. E isto se reflecte até hoje… dependemos quase tudo de Portugal. Não tínhamos muitos angolanos com academia. Temos de ser realistas. Até para se recuperar o dinheiro roubado de Angola temos de depender dos brancos. O antigo colonizador até ao momento serve de nosso guia para fazer a captura dos dinheiros. Se Portugal fosse tão amigo do angolano, na altura em que se começaram a desviar esses dinheiros eles nos deviam ter comunicado.

O que acha que devia ter sido feito antes de se chegar à proclamação da Independência?

Muita coisa. Concertação. Esgotar as possibilidades de concertação. Não foi fácil, mas tinha que se esgotar. As pessoas não conseguiram ir, porque também estavam a ser arrastados.

Essa falta de concertação é que fez com que os três movimentos de libertação proclamassem cada um a independência na sua área etnolinguística?

Se você me perguntar se a independência foi bem feita, não. Não foi bem feita. Os portugueses não entregaram isso aqui de ânimo leve com muito amor e carinho, não. Eles também participaram na criação da confusão. A 15 de Janeiro de 1975 entregaram um título, mas não fizeram o processo de descolonização. Por isso é que passados mais de quatro décadas, o ódio continua. É um amor falso de que somos irmãos da mesma língua, etc, mas é tudo falso. O mais sensato era deixar o processo amadurecer, para retirar as vantagens que poderiam ser recíprocas. Por isso, os angolanos têm que ganhar a consciência de que devem resolver os seus problemas, sem depender da decisão dos outros.

Quais as maiores lembranças que carrega consigo daquela época?

Primeiro dizer que na época vivia-se uma vida muito difícil, da minha adolescência até atingir a fase de maturação. Mas a minha maior saudade é mesmo a forma como estavam organizados todos os sectores da vida nacional. Economicamente, Angola estava melhor organizada que o próprio Portugal continental. Nós tínhamos em todos os municípios uma fábrica, aqui não estavam preocupados em fazer doutores, não. Aqui estavam preocupados em fazer técnicos, tendo em conta o nível de desenvolvimento da economia naltura. Para que fazer tantos doutores se o desenvolvimento do nível da tua economia não necessita deles? E naquele tempo combatia-se a vadiagem. Hoje tu tens mais gente a vadiar que a trabalhar.

Outra lembrança da época é que as mulheres naquele tempo não andavam a procura de engenheiros. Elas perguntavam apenas: ‘o senhor tem um ofício’? E a malta respondia sapateiro, carpinteiro, marceneiro e era assim que as pessoas levavam as suas vidas. E mais importante que tudo isso, havia mais realismo na solução dos problemas económicos.

Onde é que se falhou para que o desenvolvimento que já se tinha naquela altura não conseguisse chegar até agora? 

Meu amigo, governar um país com quadros medíocres é muito difícil. Faltou-nos quadros, faltou-nos visão. À mania lusitana nós temos a mania de galantear. Nós as vezes saímos lá do tipo dos portugueses, que falam muito e produzem pouco. E os angolanos infelizmente também herdaram essa mania de falar muito, gabarolar por tudo quanto é canto, e nos faltou visão para conservação e depois para projecção de novas acções. Não vamos a lado nenhum se não se corrigir isso. E o que a gente tem de fazer é mandar vir quadro do exterior, como a Alemanha, e trazê-los para aqui. Não temos nada que ir estudar lá fora. Os quadros devem ser servidos e formados no país. Apenas no nível de doutoramento é que podemos mandar lá fora para as especializações. Como é que estamos a mandar lá fora gente até para o ensino primário? Por isso é que temos dirigentes que nem o hino nacional sabe cantar. Estão todos desenraizados dos aspectos culturais do país.  Os miúdos de agora conhecem só a história do MPLA que também é um remendo, mas a história de Angola não conhecem, nem a geografia de Angola.

“Eu não sou do MPLA, Eu sou o MPLA”.

Como é que o General Paka olha para a realidade actual do país?

Muito mal, apesar do grande esforço que João Lourenço tem estado a fazer, o país está mal. O camarada João Loureço também organizou as suas forças e está numa direcção praticamente sozinho. Ele tem de ganhar consciência que isto aqui é país. Não importa se é da UNITA, se é do Sul, são todos angolanos.

Está a defender uma governação conjunta?

Aqui não tem conjunto. Você governa com os angolanos.

Acha que a juventude que se manifesta, o faz por imaturidade política ou por desespero da situação social?

Óh, meu amigo, a fome aguça a inteligência. Um indivíduo com fome pensa rápido e pensa mais. Eu e o João Lourenço quando fomos para a guerrilha, tínhamos acabado o 7º ano, que é o ensino médio. Hoje, os nossos filhos já estão a fazer o mestrado. Quer dizer que o coeficiente de inteligência é superior. Eu acho que João Lourenço e seus camaradas são míopes.

Tem estado a conversar com João Lourenço, seu amigo a alertar-lhe de algumas situações do país?

Ele está a fugir-me. Dizem que eu sou um “revú”, que apoio a UNITA, apoio os manifestantes. Eu apoio todo mundo. Eu sou filho de um indivíduo que ficou 12 anos no Tarrafal e aprendi ao longo destes anos a escolher os meus amigos. Eu não sou do MPLA, eu sou MPLA. Eu sou general tanto quanto eles. Eu sou reserva morar do partido. Eles deviam é vir pedir-me desculpas pelos maus tratos que eles me submeteram durante todos esses anos que travei uma ‘guerra’ com José Eduardo dos Santos.  Deixem lá os miúdos se manifestarem. E espero que não peguem mais nos miúdos para não criarem situações descontroladas.

O que acha que deve ser feito para melhorar essa imagem que se tem do MPLA?

Acabar com esse MPLA. O MPLA da Deolinda Rodrigues, do Viriato da Cruz, dentre outros, não é esse MPLA e não é do MPLA que é gatuno. Se querem fazer um trabalho de requalificação do MPLA, peçam desculpas ao povo. Busquem o dinheiro roubado e devolvam ao povo porque o povo está a morrer de fome.

Mas está-se a fazer o combate à corrupção e o repatriamento de capitais…

Quantos já entregaram? Quanto é que já devolveram? Quem é que devolveu? Quanto é que cada um roubou? E a gente está a ver que se está a fazer o combate com dois pesos e duas medidas. Os angolanos têm que despertar. Nós fomos traídos por Zé Eduardo e oxalá que não sejamos traídos outra vez por este grupo.

Na sua perspectiva, esse MPLA não vai melhorar?

Não. João Lourenço só tem mais oito meses para governar o país, porque ele tem de largar o cargo oito meses antes do anúncio das eleições. Ele meteu-se numa colmeia. Hoje, ele tem uma série de inimigos: a covid-19, o grupo do José Eduardo dos Santos, a crise económica, etc. Como é que ele vai resolver tudo isso, com o pouco tempo que lhe resta? O amigo está a ver o risco que este país vai voltar a correr? Os tais chamados de marimbondo estão cheios de dinheiro.

Eu não estou a dizer que ele está a fazer tudo mal. Também está a fazer coisas boas. Eu acho que está a se aconselhar muito mal. Hoje, está a tomar atitudes arrogantes que lhe vão conduzir para uma situação complexa.

 “Ainda acho que João Lourenço é um mal necessário, porque fez-nos criar expectativas”.

E quais são os feitos positivos de João Lourenço enquanto presidente de Angola?

Aproveitou a luta da oposição. Temos a mania de pensar que a oposição é só a UNITA, FNLA, CASA-CE, não! Todo o individuo que contesta, que reclama das condições e da governação é oposição. E porque razão é que ele não chama todos esses e conversa? Está a escolher os que lhe interessam? Eu não sei se ele usa relógio e se também tem um calendário, para gerir o tempo. Porque um bom estratega deve saber gerir o seu tempo.

Acha que João Lourenço está a perder tempo?

Claramente! Há muita coisa que ele não está a saber jogar. Ele está a pensar que o mesmo amor e medo que as pessoas tinham de Zé Eduardo também lhe têm… não se engane! Zé Eduardo é uma figura carismática da guerrilha. É mais velho. Ele não, vai se confrontar com indivíduos da idade dele.

Que conselho daria ao seu amigo João Lourenço, o Presidente da República?

Pode arranjar os amigos que ele quiser, mas não pode se esquecer daqueles amigos que com ele lutou e que sempre lhe aconselharam. É tanta gente que andou com ele que devia chamar.

Aconselhe-se com as pessoas com muita sabedoria. E nem vão lhe pedir dinheiro, como muitos que andaram a roubar o dinheiro do povo!

É mesmo nas situações com os jovens que um dia pode surgir o grande problema de Angola. É muito perigoso esse movimento juvenil. Ele tem de usar da inteligência para poder sair dessa. E não é só com os homens da segurança, não. Se ele não conseguir fazer uma blindagem esses órgãos de segurança vão lhe criar situações muito desagradáveis.

Estou com receio porque o país está a caminhar para uma situação complicada… é mesmo no meio dessas brigas dos jovens com a Polícia, onde amanhã pode surgir o grande problema de Angola.

Tem se dito que a juventude tem pressa demais…

Pressa? Ele esteve no governo de Zé Eduardo. Ele acha que governaram bem? Criaram valências para a vida do povo ou destruíram o povo? Quem é que não tem pressa? Eu acho que a juventude tem de ter mesmo pressa. Ele que não cometa o erro com medidas de Polícia. Vai ser o fim. Eu não estou contra as manifestações. Eu sou a favor. Quem não quer manifestações, governe bem.

Pensa em participar da manifestação do dia 11?

Ainda não decidi, mas também não estou isento. A manifestação é legal, está na constituição.

Acha que Angola tem condições para atrair investimento privado?

Com esse clima não acredito. Enquanto o presidente não for um pouco mais democrata e aceitar as outras forças políticas à luz da lei vai ser difícil. Se a UNITA fosse fraca ele não chegava até onde chegou.

Que perspectiva tem para Angola nos próximos cinco, 10 anos?

Eu sou muito céptico, que nem sei se a covid-19 vai me levar… mas respondendo à sua pergunta, eu prefiro reduzir no tempo. Como é que vamos conduzir este país com estabilidade? Estou muito preocupado com a sucessão de João Lourenço. Ele também pode ser candidato à sua própria sucessão, mas eu estou preocupado.

Porquê?

Estou preocupado porque este país não tem estabilidade. Como é que ele vai lutar com a equipa do Zé Eduardo?!… o senhor sabe que todas as forças do país estão divididas. Este país não está tão bem assim quanto parece ser. O João Lourenço está a ver… e tenho a plena consciência que João Lourenço ainda é um mal necessário, por ter aparecido com peito alto, criou-nos a expectativa de mudança e depois caiu. Agora anda a procura de fantasma na UNITA.

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1 Comentário

1 Comentário

  1. Visto de fora

    11/11/2020 em 2:39 pm

    Acho maravilhoso que a incompetência de gerir o próprio país, 45 anos depois, ainda acabe com a conversa que a culpa foi dos Portugueses.

    Bem podem trocar estes analfabetos por uma nova geração com mais conhecimento, mais vontade de trabalhar e ideias para o futuro do vosso país. Com estes patetas vão voltar a ter a mesma conversa daqui a 45 anos.

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