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Crónica ideal ao Domingo

A bordo do Correio da Kianda

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Por: Edson Kassanga

Trago comigo no âmago o apego por lembranças gaudiosas desde a era em que eu era garoto. Porventura eu esteja tonto por não poder recordar com exactidão se terei trazido alguma lembrança -velada entre os dedos frágeis, porém ágeis unidos- do útero de minha tão caridosa saudosa mãe. Cedo tive o cuidado de conservar coisas intrinsecamente entrelaçadas com pessoas, momentos, gestos, lugares, odores e paladares que soergueram meu coração ao zênite do deleite. Ainda rio de olhos ao alto vendados após ver cartas, bilhetes, presentes e fotografias de uma época que se a chamasse de vigente, estaria a cometer um equivoco muito evidente. Os sentimentos ternurentos povoam a mente como se o fizessem pela vez primeira. Daí vem o meu veemente costume de fazer cócegas na tela do meu telemóvel a fim de aferir o que reserva o item de memórias do Facebook. Faço isso quase todos os dias, precisamente na ocasião em que a amena, a difusa luz laranja ousa afrontar a escuridão que o céu domina.

Na alva do vigésimo quarto dia deste mês prestes acenar o último adeus, enquanto eu fazia recurso a um azul e branco barulhento para chegar ao serviço, o tempo parou. Parou e recuou ao passado parcos segundos a seguir. Tal como era trivial nessa fase do dia, os meus dedos se viram vigorosamente atraídos pelo ícone que dá acesso às memórias na rede social já mencionada e não resistiram. Através de pontos e linhas multiformes (horizontais, verticais e oblíquas) traçadas sobre o visor, eles (dedos) foram trazendo ao de cima todas as acções levadas a cabo num dia e mês como aqueles. Nesse instante, o meu cérebo emitiu uma miríade de felicidade que nem os poros conseguiram ocultar. És que uma das acções dessa data era nada a mais nada a menos que a publicação, por enquanto na minha conta do fb, do texto por intermédio do qual um dos mais notáveis sites angolano de notícias cedeu-me o bilhete para consigo seguir viagem.

Há sensivelmente um quarteto de anos, o céu cinza, em perfeita sintonia com a aconchegante temperatura ambiente, possuiu-me de tal forma que redigi um texto que definiu a direcção pela qual eu seguiria dentro da multiplicidade de textos cuja noção para a sua elaboração eu já possuia. Não obstante o mesmo ter sido hábil em seduzir algumas dulces reações na rede social azul e branca, eu ainda tinha em mente que faltava mais adoços. Para saciar essa necessidade, solicitei auxílio a um jornalista angolano cuja voz conheci pelas ondas da Rádio 2000, situada na cidade onde as belas mumwilas e o Cristo Rei servem de cartão de visita. Enviei-lhe o texto depois dele ter deixado à mostra vontade e disponibilidade em dar-me a sua mão. Volvidas magras horas, o Ernesto Samaria, profissional da voz acima referenciado, disse-me que desejava publicar o texto no site para o qual trabalhava como editor. Um conjunto de sentimentos guerreavam com resoluta valentia para a conquista do meu cambuta coração. Senti uma tristeza tão alegre e um gosto a contragosto, pese embora o medo fosse o sentimento que mais despontava. Receava não estar ainda pronto para tanto. Seria um grandíssimo desafio.

Amiúde, um dos intentos graúdos de todos quanto veem a arte/ciência feito meio e meta para as suas vidas está atrelado à partilha de seus trabalhos com o tremendo mundo. Após horas e horas de exercício reflexivo em recintos onde a solidão, bem como o silêncio dançam horas a fio, o escritor, o músico, o pintor, o investigador, o cientista, o jornalista, o cronista, etc anseiam que o seu labor chegue à superfície a fim de que seja apreciado pelo público. Para os iniciantes, quer nas carreiras supracitadas como não, essa ansiedade apresenta-se mais densa, em predominante parte devido ao medo, por ser verdade que, um mau, imaturo ou vergonhoso começo pode ser suficiente para fazer triunfar qualquer pensamento de renúncia, de maneira definitiva. Foi esse o mesmíssimo sentimento que se arreigou no meu coração, órgão responsável para espargir vida em todas as artérias e becos de qualquer organismo, quando tomei conhecimento que a minha resposta resultaria na publicação do texto no Correio da Kianda.

O escrupuloso olhar que lançamos às nossas capacidades deixa-se trajar por diversos tecidos a medida que se expande o tic-tac tão dono de si mesmo e a profundidade do kandandu por via do qual a sociedade nos envolve ou nos deixamos envolver. Existem vezes, cujo número não cabe nos dedos, que só descobrimos certas habilidades em nós mesmo no jogo de cede e recebe com a sociedade. Nesse enlace, as sujeitas são postas à prova e o que não se espera prospera. Além de nos permitir dar valor a hábitos antes vistos como vícios e vice-versa, a sociedade também põe ao nosso dispor as chances de que precisamos para desvendar e aprimorar a realização de tarefas que já fazemos com alguma distinção.

Mas para que tal descoberta e aprimoramento aconteçam, é necessário estarmos disponíveis em aceitar calcorrear por distâncias para lá das que já percorridas; é preciso termos a coragem de nos jogar ao mar sem ter certeza da profundidade de suas águas ou das milhas que nos apartam do porto mais próximo; é mister palmilhar por milhares de quilômetros, quase às cegas, à mercê de quedas aparatosas e tatuagens incômodas; requerer que estejamos preparados para descartar a renúncia apesar da pesada dor que o percurso poderá desenhar sobre o nosso dorso; enfim, exige ousadia em corrermos riscos, aceitando desafios para além das nossas reais capacidades. Foi no trilho dessas ideias, reclusas na cabaça onde as memórias e meditações não só moram como também namoram, que em fim aceitei a publicação do texto. Em atenção ao teor, à maneira com que o texto foi escrito, aliadas às manifestações de que foi alvo, a crónica apossou-se de mim até hoje.

A bordo do Correio da Kianda, porventura desde a véspera do embarque, entendo ter exposto meu rosto para uma imponente, diferente e exigente quantidade de leitores, leitores cujo apogeu do desejo é achar tiras da sua tez nos textos que escrevo e que são aprovados pelo crivo editorial do site. No começo pareceu-me ser um compromisso imenso para aquilo que eu efectivamente podia realizar. Mas no decurso dos dias que foram dar à luz a outros substantivos, as expectativas negativas foram esvaindo de maneira furtiva, graças aos puxões de orelha, assim como aos bwé de kandandus que vi florescer nos “falares” e nos olhares dos leitores. Porém, escrever crónicas para o Correio da Kianda continua sendo um desafio, decorrente do tempo de estrada e da insígne e perene missão de enaltecer os valores morais, cívicos e culturais da nação.

Ao Ernesto Samaria e todo elenco do Correio da Kianda, aqui vão os meus honestos votos de graúda gratidão!

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