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Crônica

Estudar é pecado, juro mesmo!

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Há já algum tempo temos observado, muito particularmente em Luanda, que, quanto maior o nível de literacia dos indivíduos, maior a tendência em dificultar a comunicação. Uns fazem-no simplesmente para manter a elegância discursiva; outros, para mostrar que são cultos; e ainda outros, para impressionar, sabe-se lá a quem, muitas vezes usando termos cujo significado desconhecem, proferindo, assim, ofensas contra aqueles a quem se dirigem ou que os acompanham.

O que essas pessoas têm em comum, na maioria dos casos, é que se esquecem do kairós, ou seja, de adequar o discurso em função da audiência no momento.

No jornalismo, minha profissão, a regra diz que, quanto mais simples, melhor e maior será o impacto junto do público. Aliás, hoje em dia, com o advento e a massificação das Tecnologias de Informação e Comunicação, a heterogeneidade quase deixou de ser uma característica exclusiva do meio rádio. Portanto, não me refiro aqui à linguagem técnica dos meios de comunicação, mas à comunicação oral do dia a dia.

A teoria diz-nos que os formados em Direito são os campeões nesse quesito, mas a realidade mostra que não são só os juristas que se apresentam com discursos arrojadamente fabricados. São técnicos superiores de quase todas as áreas do saber.

Dos vários discursos que me ecoam na memória, realço aqui algumas frases com as respectivas ‘traduções’.

A primeira, talvez a mais engraçada, ouvi há alguns anos, ainda nos meus tempos de universitário:

– “Meu ilustre, tenha a parcimoniosa bondade de facultar-me, por uns instantes, o seu objecto cortante para ponteaguçar o meu objecto escrevente, para com ele realizar a exitosa missão acadêmica que me foi concebida pelo meu comparsa.”

Santo Deus!… Custa tanto dizer “colega, empresta-me, por favor, o teu afia lápis”, a ponto de gastar mais de 30 palavras para pedir um simples material escolar?…

Certa vez, enquanto eu editava a reportagem de um colega, surpreendi-me ao ouvir o entrevistador perguntar:

– “Há quanto tempo faz a prestação de serviços sensoriais personalizados?”

A prostituta ficou engasgada, na hora de responder…

Lembro também do senhor que há tempos viajou comigo à noite no mesmo táxi, do conhecido Triângulo dos congolenses no Rangel ao Cazenga. Parecia ter mais 60 anos de idade, e estava ele acompanhado de uma novinha (uns 28 anos), e todo sorridente e feliz da vida, a vigiar quem ousasse se encostar na sua dama. Em dado momento, repudiou o cobrador que o tratou por “mais-velho”, tendo respondido:

– “Eu não sou mais velho. Sou jovem usado!”

Hoje, com os economistas a dominarem cada vez mais presença nos meios de comunicação tradicionais e alternativos, em função da crise económica que o país vive, um novo léxico ganhou morada entre nós: “Estou sem liquidez!…”

A frase até é curta e simples, mas trocar ’em miúdo’ e dizer “estou sem dinheiro” é muito mais bonito.

No meu bairro, alguém que deixa de honrar um compromisso e na justificação vem dizer que está com “problemas de liquidez” corre grande risco de ser entendido como alguém com uma nova doença.

Se disser que está com “falta de liquidez”, pode ainda confundir o interlocutor, levando-o a pensar que se trata de fome ou falta de sangue no organismo.

Portanto, as pessoas com altos níveis de instrução académica são justamente aquelas que mais estão a cometer ‘pecados comunicacionais’ contra a maioria que os rodeia.

Como se diz nas redes sociais: “os que estudaram de verdade nas grandes universidades até nem falam assim, mas os ilustres, os prezados… só Deus!”

Lembro-me daquele chefe que, em plena reunião de trabalho, soltou a frase “vícios de procedimentos” ao tentar chamar atenção de um funcionário de base, gerando gargalhadas pela sala, pois poucos entenderam e os demais precisaram de alguns segundos de tempo a mais para processar a mensagem.

Outro dia, assisti à briga de dois doutores em pleno debate televisivo, num canal moçambicano, quando na sua nota introdutório, um dos convidados disse: “como disse aqui o meu comparsa”, querendo dizer colega de painel, tendo gerado um debate paralelo sobre semântica e sinônimo em relação à palavra COMPARSA, entre os dois académicos.

Quem não se lembra do episódio na TV estatal angolana, em que um renomado jurista ameaçou tomar medidas judiciais contra um dirigente desportivo, colega de painel, após este ter dito que o jurista havia proferido “falácias”? e olhem que o dirigente desportivo só queria elogiar as palavras introdutórias do renomado jurista!

Portanto, são muitos casos que podíamos trazer aqui como exemplos, em que os nossos doutores querem mostrar que de facto estudaram.

Pensando bem, até que têm razão. Não é fácil ser licenciado, mestre ou doutor neste país, onde a cada seis meses as universidades aumentam o preço das propinas e ainda dizem que: —“não se trata de aumento, mas de um simples reajuste.”

A propósito, cá no meu bairro, a palavra REAJUSTE pode ser entendida mais como desconto do que como aumento…

Como diz o Man’Tonas, meu vizinho do bairro:

– “Angolano não estuda para desenvolver o país. Angolano estuda para humilhar os outros.”

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