Opinião
50 Anos de Independência: a história censurada e o silêncio sobre Holden Roberto e Jonas Savimbi
A celebração dos 50 anos da independência de Angola representa um momento de reflexão sobre a trajectória histórica do país, os desafios enfrentados e os protagonistas dessa luta. No entanto, a decisão do governo angolano de excluir Holden Roberto e Jonas Savimbi da lista de homenageados com medalhas de honra levanta questões profundas sobre a construção da memória histórica e as dinâmicas do poder político.
Essa exclusão não pode ser analisada de forma isolada, pois insere-se num processo mais amplo de gestão da história e da identidade nacional, onde o partido no poder define quem deve ser lembrado e quem será esquecido. As teorias do poder ajudam a compreender esse fenómeno, mostrando como a memória colectiva pode ser manipulada para consolidar hegemonias políticas e garantir a continuidade da dominação.
A Dominação Política e a Construção da Memória Nacional
Segundo Max Weber (1978), a manutenção do poder pode ser explicada por três tipos de dominação: tradicional, carismática e legal-racional. O MPLA, como partido governante desde a independência, baseia-se numa dominação legal-racional, sustentada por instituições estatais e mecanismos de controlo político. Contudo, a sua longevidade no poder também se apoia numa narrativa histórica que o posiciona como o único e legítimo libertador da pátria, minimizando o papel de outras forças políticas na luta de libertação nacional.
A exclusão de Holden Roberto e Jonas Savimbi do reconhecimento oficial reflecte essa estratégia de monopolização da história, onde figuras da FNLA e da UNITA são relegadas a um papel secundário ou mesmo ignoradas. Para Weber, “a dominação legítima exige um quadro institucional que sustente a crença na autoridade” (Weber, 1978), e a omissão de adversários históricos fortalece essa crença ao reforçar a ideia de que apenas o MPLA foi responsável pela independência e pela construção do Estado angolano.
Essa prática não é inédita na história política mundial. Regimes autoritários e democracias frágeis frequentemente utilizam a reescrita da história como ferramenta de legitimação, controlando a forma como os eventos passados são lembrados para assegurar a sua posição dominante no presente.
Hegemonia e Poder Simbólico: O Controlo da Cultura e da Ideologia
A teoria da hegemonia cultural, desenvolvida por Antonio Gramsci (1971), oferece outra perspectiva relevante para compreender essa decisão. Para Gramsci, o poder não se sustenta apenas pela força, mas também pelo consenso ideológico construído por meio da cultura, da educação e dos meios de comunicação.
Ao longo dos anos, o MPLA consolidou uma hegemonia discursiva que marginaliza as contribuições da FNLA e da UNITA na luta contra o colonialismo português. A decisão de não conceder medalhas de honra a Holden Roberto e Jonas Savimbi reforça essa hegemonia, assegurando que a versão da história promovida pelo Estado continue a ser dominante na memória colectiva da nação.
Essa estratégia está alinhada com o conceito de poder simbólico, descrito por Pierre Bourdieu (1989) como a capacidade de impor significados e definir a realidade social. O Estado detém o monopólio da produção simbólica e utiliza essa posição para moldar a percepção dos cidadãos sobre a história do país. A não inclusão de figuras da oposição no reconhecimento oficial da independência é uma forma de silenciamento simbólico, onde a ausência torna-se uma ferramenta de marginalização política.
Bourdieu argumenta que “o poder simbólico não se impõe pela força bruta, mas pela aceitação tácita da sua legitimidade” (Bourdieu, 1989). Assim, a população, ao consumir repetidamente essa narrativa, acaba por naturalizar a exclusão de outros protagonistas da independência, perpetuando a versão oficial da história.
Poder e Discurso: Quem Controla a História Controla o Futuro
Para Michel Foucault (1977), o poder não está apenas nas instituições políticas, mas também nos discursos que definem o que é considerado verdade. O governo, ao excluir determinadas figuras históricas, não está apenas negando-lhes reconhecimento, mas também estabelecendo quem tem o direito de ser lembrado e quem será apagado da memória oficial do Estado.
Foucault argumenta que “o poder produz saber” (Foucault, 1977), ou seja, quem controla os discursos históricos tem o poder de moldar a identidade nacional. Ao narrar a história da independência sem a presença de Holden Roberto e Jonas Savimbi, o governo não está apenas a relembrar o passado, mas a reescrevê-lo de forma selectiva, garantindo que apenas determinados protagonistas sejam reconhecidos e celebrados.
O Controlo da Agenda Política e a Exclusão da Memória Colectiva
Uma outra abordagem relevante é a teoria do poder estrutural e ideológico, proposta por Steven Lukes (2005). Lukes destaca que o poder manifesta-se em três dimensões:
1. O poder decisório – Quem toma as decisões políticas?
2. O poder estrutural – Quem define as regras do jogo?
3. O poder ideológico – Quem controla o que pode ou não ser discutido?
A decisão do MPLA de não homenagear figuras da oposição reflete essa terceira dimensão do poder. Ao definir quais memórias são legítimas e quais devem ser apagadas, o governo restringe o debate público e molda a identidade colectiva do país.
Este tipo de exclusão histórica não ocorre apenas em Angola. Diversos regimes políticos ao longo da história manipularam a memória colectiva para reforçar a sua legitimidade. Desde a União Soviética, que apagava figuras políticas das fotografias oficiais, até governos autoritários na América Latina que reescreviam a história dos movimentos de resistência, a gestão da memória tem sido uma ferramenta essencial de dominação política.
Conclusão: A Luta Pela Verdade e Pela Memória
A exclusão de Holden Roberto e Jonas Savimbi das homenagens pelos 50 anos da independência não é apenas uma escolha política, mas um mecanismo de exercício do poder simbólico e ideológico. Como demonstram as teorias de Weber, Gramsci, Foucault, Bourdieu e Lukes, o poder não se manifesta apenas na força do Estado, mas também na capacidade de definir a história, controlar a narrativa pública e estruturar a memória colectiva de uma nação.
Se Angola deseja avançar para um processo genuíno de reconciliação nacional e fortalecimento da sua democracia, é essencial que o reconhecimento da luta pela independência seja plural e inclusivo. A independência do país foi conquistada por múltiplos actores políticos e militares, e qualquer tentativa de reduzir essa luta a um único protagonista representa uma distorção da verdade histórica.
A disputa pelo passado continua a ser uma disputa pelo presente e pelo futuro. Num contexto onde a juventude angolana cada vez mais questiona as versões oficiais da história, a construção de uma memória colectiva baseada na verdade e na inclusão poderá ser um passo fundamental para a consolidação da democracia e do desenvolvimento nacional.